quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

NOTAS SOBRE EDGAR ALLAN POE NO CINEMA, VIII


DAVID W. GRIFFITH E EDGAR ALLEN POE (sic)
David W. Griffith era um admirador incondicional de Edgar Allan Poe e dedicou-lhe várias obras. Uma, datada de 1909, com o título “Edgar Allen Poe” (sic), é um curioso esboço biográfico, composto por seis planos, com um total de pouco mais de sete minutos. Primeiro (falso) plano (são dois planos, unidos por uma trucagem): num quarto, uma cama onde repousa uma rapariga visivelmente doente, virada para uma longa janela que recebe a luz do dia. Entra Edgar Allan Poe que se preocupa com o estado da jovem mulher. A um canto, uma pequena mesa, sobre a qual, numa prateleira, repousa um busto. Súbito (trucagem, logo um falso plano único), surge nessa mesma prateleira, um corvo negro. Poe olha-o, surpreso, sente-se que a inspiração o invade, escrevinha algo numa folha de papel que vai mostrando, entusiasticamente, repetidas vezes à mulher. Terceiro plano: redacção de um jornal, onde se encontram dois jornalistas, trabalhando. Entra Poe, mostra o seu trabalho (obviamente o poema “The Raven”) a um que o rejeita, depois ao outro, que o afasta igualmente. Quarto plano: numa redacção de um outro jornal, uma mesa, um homem, com o letreiro “Editor” sobre a mesa, conversando com uma mulher. Entra Poe, mostra o poema à mulher que o recusa rapidamente, depois de ler algumas frases, mas o editor chama Poe, lê agradado o poema e paga a Poe por ele, que parte encantado com o dinheiro na mão. Quinto plano: de novo o quarto com a jovem doente, mas desta feita com um enquadramento mais fechado (sem se ver a prateleira): a mulher sofre, soergue-se, e desfalece. Entra Poe com mantimentos, um cobertor e um ar triunfante. Sexto plano (o enquadramento anterior, do primeiro plano, vendo-se a prateleira): Poe começa a agasalhar a jovem, mas, ao pegar-lhe no braço, compreende que chegou tarde e o corpo não passa de um cadáver. Desespero de Poe. Fim.
O filme é nitidamente uma ficção sobre um aspecto da vida de EAP, tentando explicar a génese de um poema, e estabelecendo uma relação dramática entre a criação literária e a vida quotidiana. Um filme dos primórdios do cinema que mostra como EAP era já mitificado como escritor romântico e maldito no início do século XX.

Ainda em 1909, Griffith realiza “The Sealed Room”, segundo argumento de Frank E. Woods, baseado numa reunião de obras de Honoré de Balzac ("La Grande Breteche") e Edgar Allan Poe ("The Cask of Amontillado"). França, o rei que mantém uma amante, manda construir um ninho de amor que todavia será aproveitado pela infiel amante para se encontrar com o romântico baladeiro da corte. Um dia, julgando o rei afastado, ambos são emparedados vivos no refúgio de amor, quando o monarca descobre a traição. Não se percebe muito bem se um tal filme era considerado de horror na época. Hoje assemelha-se mais a uma deliciosa comédia, com os pedreiros, dirigidos pela soberana figura, a construírem um muro em lugar da porta que liga o rei aos amantes em arrufo. Construído em quadros, vários planos que se sucedem, num enquadramento teatral, sem alteração de grandeza, esta é uma obra apenas curiosa. Arthur V. Johnson (rei), Marion Leonard (cortesã), Henry B. Walthall (baladeiro), Linda Arvidson, William J. Butler, Verner Clarges, Owen Moore, George Nichols, Anthony O'Sullivan, Mary Pickford, Gertrude Robinson, Mack Sennett e George Siegmann são os intérpretes, alguns deles em papéis meramente de figurante (caso de Mary Pickford ou Mack Sennett).
Dois anos depois, Griffith volta a Poe, em “The Two Paths”, onde se sente uma forte influência da Bíblia e de Edgar Allan Poe. Não é dos filmes mais significativos deste período de Griffith (que rodava por ano dezenas e dezenas de pequenos filmes de duas bobines). Trata-se de um melodrama sobre duas irmãs que tomam diferentes direcções nas suas vidas. Uma, Florence, mais irreverente e ambiciosa (Dorothy Bernard), vai para a cidade e torna-se amante de um milionário. A outra, Nellie, mais calma (Linda Arvidson), fica na casa do campo e casa-se por amor. Um belo trabalho de Griffith que imagina diversas cenas particularmente interessantes de um ponto de vista de narrativa audiovisual, e de significação imagética, sendo de realçar ainda a interpretação, onde figuram Donald Crisp, Lottie Pickford, Blanche Sweet, Charles West, Dorthy West e Wildred Lucas em pequenas aparições.
CONSCIÊNCIA VINGADORA
O outro filme em que David W. Griffith se aproximou do universo de Edgar Allan Poe, foi “The Avenging Conscience”, rodado em 1914, e que mescla poemas e ficção, sendo que a base são “Annabel Lee” e “The Tall-Tale Heart”, com algumas citações de “The Pit and the Pendulum”, “The Black Cat” e “The Conqueror Worm”.
Uma das personagens chama-se Annabela (Blanche Sweet) e está apaixonada por um jovem, que vive com um tio zarolho. O jovem lê poesia de Edgar Allan Poe (precisamente “Annabela Lee”) e apresenta ao tio a sua apaixonada. Mas este trata-a de forma grosseira, chamando-lhe “uma mulher vulgar”, e expulsando-a de casa. O órfão (Henry B. Walthall) não aceita de bom grado o comportamento tirânico do tio (Spottiswoode Aitken), e imagina a vingança, no que é auxiliado por algumas situações que observa no seu jardim, uma aranha envolvendo uma mosca no seu letal abraço ou uma multidão de formigas imobilizando e matando um insecto. Imagina então o assassinato do tio. Mas o crime é visto através da vidraça por um brutamontes de origem italiana (George Siegmann) que inicia logo ali a chantagem. O filme prolonga-se então como um melodrama muito ao estilo de Griffith, com uma ou outra incursão pelo fantástico e o místico (aparições de sobreposições da imagem de Cristo), terminando com uma alusão ao deus Pan, e um “happy end” escusado. Mas trata-se de uma obra invulgar (não esquecer que é uma realização de 1914, com cerca de 80 minutos, antecipando a obra-prima do ano seguinte, “O Nascimento de Uma Nação”), com uma construção dramática em muitos momentos admirável, o recurso a notas de observação inusitadas (planos de cães, gatos, um sapato tocando a porta de casa, tudo anotações de uma elegância e subtileza sem par na época), enquadramentos brilhantes, encadeados de imagens que relembram obras vanguardistas (muitas delas muito posteriores), e um extraordinário efeito sonoro sugerido pela imagem (num filme mudo), quando o detective bate com um lápis numa mesa, ao lado de um relógio de parede, o que leva o jovem órfão a “ouvir” o coração do tio e a confessar o seu crime.
O CORAÇÃO REVELADOR (1941)
“The Tell-Tale Heart” é um conto de Edgar Allan Poe que serviu de base a numerosas adaptações ao cinema. Uma que conhecemos e que nos parece dos melhores trabalhos cinematográficos saídos de temas poeanos é a versão de 1941, assinada por Jules Dassin, que com esta curta-metragem iniciava s sua carreira de realizador.
Interpretada com brio por Joseph Schildkraut e Roman Bohnen, “The Tell-Tale Heart” mantém-se muito próxima da obra literária, ainda que transpondo com felicidade os valores literários para valores de imagem (e som, diga-se de passagem, aqui essenciais). Um jovem homem vive amedrontado pela prepotência do seu velho amo, zarolho, que o trata mal, o esbofeteia, que o amesquinha como se ele fosse uma criança. O jovem trabalha num tear, cuida da casa, e sente a revolta crescer dentro de si. Um dia ameaça o velho com a fuga, mas este desdenha. Nessa noite, sobe ao quarto do despótico patrão, e mata-o, enterrando o corpo por baixo do soalho da casa. Mas a partir dai começa a ouvir o coração do velho a bater, como que exigindo vingança. Um coração que se tornará “revelador” para algumas visitas.
A fotografia é de um excelente preto e branco, a iluminação torna-se um aspecto essencial no filme, jogando importante papel no acentuar de sombras que se agigantam, na forma como é utilizada uma lanterna para criar focos de luz, nomeadamente na cena do assassinato, a realização é cuidada, alternando criteriosamente a grandeza dos enquadramentos, utilizando sabiamente certos processos simbólicos de narrar algumas cenas (o assassinato: o velho arrasta violentamente com uma mão uma pequena tapeçaria que tem por cima da cama, e que lhe cobre o rosto, quando morto, regressando à parede – e à normalidade reposta - depois do crime escondido), optando por uma expressividade sonora muito coerente com o projecto. Desde início que se chama a atenção do espectador para a acuidade do ouvido do jovem, que pressente a chegada do velho através dos seus passos, o que voltará depois a acontecer após o crime, quando o gotejar de uma bica de água ou o tiquetaque de um relógio se agigantam e se transformam no latejar de um coração que, apesar de morto, continua a trabalhar. Mas o som é talvez o elemento central desta pequena obra, sobretudo quando a voz off do velho ensombra a casa e a consciência humilhada do criado.
Trata-se de um belíssimo trabalho, cerca de vinte minutos que prenunciavam uma bela carreira a Jules Dassin. O que veio a acontecer.
Nota: Esta curta-metragem aparece inscrita no DVD “A Sombra do Homem Sombra”, da série “O Homem Sombra”, Ed. Warner em Portugal.

Em 1953, surgiu outra famosa adaptação de “The Tell-Tale Heart” ao cinema, desta feita em animação, com argumento de Fred Gable e Bill Scott e realização de Ted Parmelee. É uma excelente versão, produzida pela UPA, muito fiel ao original, que alias tem alguns excertos lidos na voz de James Mason, que funciona como o protagonista-narrador (Stanley Baker dá-lhe réplica nalguns momentos). Foi nomeado para Melhor Curta-metragem de Animação do ano, e em 1994 considerado um dos 50 melhores desenhos animados de sempre. Em 2001 foi seleccionado pela United States Library of Congress para ser considerado filme de relevante significado cultural e assim preservado no National Film Registry.
Nota: apareceu incluído como extra na edição de DVD de “Hellboy”. Pode ser visto no You Tube no seguinte endereço:
http://br.youtube.com/watch?v=W4s9V8aQu4c&eurl=http://laboratorio-de-realizacao-audiovisual.blogspot.com/2008/05/tell-tale-hear.html


ALONE

From childhood's hour I have not been / As others were; I have not seen / As others saw; I could not bring / My passions from a common spring. / From the same source I have not taken / My sorrow; I could not awaken / My heart to joy at the same tone; / And all I loved, I loved alone. / Then- in my childhood, in the dawn / Of a most stormy life- was drawn / From every depth of good and ill / The mystery which binds me still: / From the torrent, or the fountain, / From the red cliff of the mountain, / From the sun that round me rolled / In its autumn tint of gold, / From the lightning in the sky / As it passed me flying by, / From the thunder and the storm, / And the cloud that took the form / (When the rest of Heaven was blue) / Of a demon in my view.
Edgar Allan Poe


Este poema aparece publicado no “Scribner’s Monthly Magazine”, de Setembro de 1875, mas o manuscrito deveria datar de 1829, mais coisa menos coisa, segundo os estudiosos da obra de Poe, que detectam nele fortes influências de Lord Byron. O poema nunca foi titulado por Edgar Allan Poe, e a designação “Alone” é atribuída aos editores da sua obra póstuma. É com base neste poema que os argumentistas Paul Hart-Wilden, David Ball, Philip Claydon, John P. Davies e Mark Laughman e o realizador Philip Claydon constroem o esquema de “Alone”, filme de 2001, que assinala a estreia na realização deste cineasta inglês (que se prepara para lançar em Londres “Lesbian Vampires Killers”).
Filme de terror ambientado na actualidade, “Alone” não será uma surpresa, mas é uma obra que se acompanha com atenção e sem esforço. Vivendo, em certas sequências, de uma montagem rápida, e de um encadeado de imagens que relembram os filmes de vanguarda, com planos muito fechados, câmara desequilibrada, solarizações e uma utilização violenta das cores, cenários estranhos e enquadramentos invulgares, “Alone” assemelha-se em muito a episódios de séries televisivas de temática policial, com uma dupla de detectives, ele mais velho, ela mais nova, que investigam o caso de uma mulher que aparece morta, depois de ter descido aos repelões pelas escadas abaixo da sua casa. Todos se parecem inclinar para acidente ou suicídio, mas o crime transparece nalguns aspectos. O que se torna mais óbvio quando aparecem outros casos, não semelhantes, mas que podem ter relação entre si.
Enquanto a polícia investiga por um lado, nós, espectadores, temos a visão da criminosa (não a visão do seu corpo, mas temos literalmente a visão do que ela vai vendo, através de câmara subjectiva), e vamos acompanhando os seus pensamentos, as suas obsessões, os seus fantasmas. E compreendemos as causas que a levam a matar “sem querer” (“O pior criminoso é aquele que não tem a noção do mal que faz”, diz a certa altura o detective), que a impelem a procurar alguém a quem ofertar o seu amor, das formas mais trágicas. Alex, que quase desde início sabemos ser a criminosa, teve uma infância infeliz, os pais morreram quando ela era adolescente, e a partir daí vive obcecada por vozes e por uma solidão irremediável que a atormenta. Procura amores, cumplicidades. Em mulheres de todos os géneros. Da prostituta de cabaret à secretaria de uma psiquiatra.
O filme é, pois, uma obra interessante, com muito pouco a ver com Poe, mas um forte dose de pretensões narrativas, ainda assim denotando qualidades que poderão, ou não, ser confirmadas num futuro próximo. Mantendo-se no campo do lesbianismo, aí teremos brevemente “Lesbian Vampires Killers” para tirar teimas.


terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O CORVO

THE RAVEN
INTERPRETAÇÃO DE VINCENT PRICE

THE RAVEN
NA VOZ DE CHRISTOPHER WALKEN

THE RAVEN

INTERPRETAÇÃO DE JOHN ASTIN

O BARRIL DE AMONTILLADO

O BARRIL DE AMONTILLADO
INTERRETAÇÃO DE VINCENT PRICE


PRIMEIRA PARTE:

SEGUNDA PARTE:

O CORAÇÂO REVELADOR

O CORAÇÃO REVELADOR
INTERPRETAÇÃO DE VINCENT PRICE

PRIMEIRA PARTE:

SEGUNDA PARTE:

THE TELL-TALE HEART

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

NOTAS SOBRE EDGAR ALLAN POE NO CINEMA, VII

A QUEDA DA CASA USHER
“A Queda da Casa Usher”, que Edgar Allan Poe escreveu em 1839, é um dos seus trabalhos mais conhecidos e mais adaptados não só ao cinema como a outras formas de expressão e de narrativa. No cinema são inúmeras as versões conhecidas, a começar logo perla década de 20, onde surgem duas adaptações vanguardistas, uma americana, de 1926-28, da dupla James Sibley Watson e Melville Webber, outra francesa, de um dos nomes grandes da vanguarda dessa época, Jean Epstein. A primeira é uma curiosa experiência de recorte nitidamente expressionista, filmada em Rocheter, Nova Iorque, com uma forte influência de poetas e artistas plásticos, expressa aliás na colaboração de Melville Webber, que assegurou o lado plástico, procurando recuperar certos aspectos dos frescos medievais, e de James Sibley Watson, que se interessou mais pelos efeitos visuais em que o pequeno filme (13 minutos) é pródigo e que logram efeitos muito sugestivos.
“A Queda da Casa de Usher” (La Chute de la Maison Usher), de 1928, França, tem argumento de Jean Epstein e Luis Buñuel (que foi ainda assistente de realização) e interpretação de Jean Debucourt (Sir Roderick Usher), Marguerite Gance (Madeleine Usher), Charles Lamy (Allan), Fournez-Goffard (médico), Luc Dartagnan, Abel Gance, Halma, Pierre Hot, Pierre Kefer, etc. São 63 minutos do melhor que Poe inspirou ao cinema, uma verdadeira obra-prima do fantástico e do onírico, logrando criar Jean Epstein uma atmosfera poética admirável, através da fabulosa utilização da imagem, dos enquadramentos, dos movimentos, do jogo de combinação de grandeza de planos, da iluminação, da própria “encenação” dos espaços.
Por uma terra de ninguém ventosa e lúgubre, solitária e inóspita, avança um homem carregando duas malas. Entra numa estalagem e pede para alguém o conduzir a casa dos Usher. Olham-no surpresos e com estranheza. Percebe-se a razão que leva o desconhecido até ali: uma carta de Roderick Usher convida Allan, um velho amigo, a visitá-lo, adiantando que está doente e a mulher também. Um saco de moedas na mão de Allan e o aparecimento de alguém numa carroça provoca o efeito desejado. Chegado ao palácio, e depois das boas vindas, o jantar onde Roderick e Allan recuperam memórias. Mas Roderick está impaciente. Quer continuar a trabalhar no retrato da mulher, Madeleine (subtil desvio do conto de Poe, Madeleine passa de irmã a mulher). Por isso, Allan é enviado para uma passeata pelo campo, enquanto Roderick (magnificamente interpretado por Jean Debucourt, num tipo de composição extremamente conseguida, em vigor e subtileza, uma mistura invulgar que surpreende e fascina) volta ao quadro e à mulher que posa, ameaçada pelo olhar do marido que a consome, a domina, a submete. Há uma cena brilhante que confere todas essas sensações: grande plano do rosto de Roderick, o seu olhar obsessivo; plano de Madeleine, posando, inscrita num cenário soturno, implorando tréguas com o olhar; pormenor das mãos de Roderick apertando-se; plano da paleta, do pincel escolhendo as cores e as tintas.
Madeleine é o modelo, a inspiração; Roderick pinta-a, olha-a, suga-lhe a vida com o olhar. Cada nova pincelada no quadro reflecte-se no rosto de Madeleine, que se sente atingida, macerada. Roderick pinta à luz de velas que se consomem. A imagem desta sequência restitui a tortura, o martírio, a posse, a violação. Súbito a câmara afasta-se e descobre-se a grandeza do cenário, um salão enorme, onde Roderick dá pasto à sua obsessão. Olha a mulher, olha a paleta, olha o quadro. Está obviamente muito mais interessado no quadro do que no modelo. Dirá mais tarde: “O quadro é a verdadeira vida”. A mulher jaz no chão, desfalecida. Ele continua a pintar sem dar por nada. Madeleine morre. Roderick transporta-a então nos braços, horrorizado. Allan, lendo um livro comenta: “Roderick estava possuído pela teoria do magnetismo.” (algo que interessava muito Edgar Allan Poe).
Segue-se toda a sequência da preparação do enterro, as dúvidas (“Ela não está talvez morta!?”), Roderick quer impedir o enterro, o quadro toma definitivamente o lugar da mulher morta (“Ela não nos abandonará!”), o pintor olha-o, extasiado, enquanto o caixão é fechado, perante o horror de Roderick. Sequência que relembra em muitos aspectos planos de “Nosferatu”, de Murnau. O enterro inicia-se, passam por áleas de jardins, por entre o nevoeiro, vogam ao sabor das águas de um rio, o véu branco desta fúnebre noiva deslizando nas águas, erguendo-se no ar, preso da barcaça. Descem à cripta, uma boca aberta iluminada do exterior, projectando luz. O caixão é fechado, pregado finalmente, o martelo do horror descendo sobre o prego, iluminados por velas. Ratos que fogem pelos cantos, um sapo.
Depois do enterro, o silêncio que tudo envolve. A monotonia. A natureza-morta. Rio, serra, palacete, ninguém. Um gato. Roderick olha escadas e corredores desertos, os cortinados esvoaçando. O mínimo ruído exaspera-o. A guitarra abandonada. As mãos cruzadas. Sonho, pesadelo, imagens deformadas, sobreposições, grandes planos de rostos, pormenores ameaçadores. As cordas da guitarra que se soltam, sozinhas, “Roderick não volta a proferir o nome de Madeleine”. Parece paralisado pela dor. Um relógio. Um pêndulo que se assemelha muito ao pêndulo de “The Pit and the Pendulum”. O tempo que passa. A tempestade que avança. Allan lê num livro uma passagem sobre uma sepultada viva. Enquanto isso, na cripta, o caixão de Madeleine tomba da prateleira onde fora depositado. Roderick, no vasto salão, junto ao fogo que crepita na lareira, balouça os pés sentado numa cadeira. As velas pegam fogo aos cortinados com a ventania que se abate sobre o palácio, que começa também a desmoronar-se. As armaduras metálicas nos corredores desabam. Roderick olha fascinado a destruição. Será loucura, a deste olhar? Madeleine regressa, de branco, noiva, de véus ao vento, flutuando como um fantasma. “Sim, ouço-a, ouço-a desde o primeiro dia!”, grita Roderick. “Nós enterrámo-la viva!”. O fogo tudo cobre. Allan afasta-se para o exterior do palácio. Madeleine e Roderick abraçam-se, e é assim que tentam fugir das labaredas. Em vão. O quadro de Madeleine sossobra igualmente no inferno das chamas.
Nesta obra que interpreta da melhor forma o universo de Poe, inspirando-se em Dreyer (“O Vampiro”), e Murnau, em “O Retrato de Dorian Gray”, na literatura, Epstein cria um ambiente de cortar à faca, com uma enorme economia de meios, usando uma linguagem vanguardista que vai buscar muito aos expressionistas, mas também ao surrealismo e aos vanguardistas franceses dessa época. Um grande momento de cinema.
“The Fall of the House of Usher” regressa aos ecrãs, em 1949, com assinatura de Ivan Barnett, numa produção inglesa. Que desconhecemos.
A partir dos anos 50, a televisão não larga a obra de Poe, com várias versões conhecidas. Ainda em 1949, o produtor Fred Coe, na série de TV "Lights Out", faz uma primeira versão televisiva de “The Fall of the House of Usher”. Ainda na América, em 1956, em "Matinee Theatre", é Boris Sagal quem dirige o episódio dedicado à “House of Usher”. Em Inglaterra, em 1966, Kim Mills volta ao tema, num dos episódios de “Mystery and Imagination", interpretado por Denholm Elliott (Roderick Usher), e Susannah York (Madeleine Usher). Em França, em 1981, será Alexandre Astruc quem dirigirá Fanny Ardant (Madeleine Usher), Mathieu Carrière (Sir Roderick Usher) e Pierre Clémenti, num dos episódios de “Histoires Extraordinaires: La Chute de la Maison Usher”. Na Hungria, Attila Apró, em 1982, assina “AzElitélt”, igualmente para TV, segundo o mesmo conto. James L. Conway, numa produção norte-americana e checoslovaca, no mesmo ano, adapta ao pequeno ecrã o mesmo texto de Poe, com um bom elenco: Martin Landau (Roderick Usher), Charlene Tilton e Ray Walston. Em 1988 é a vez de outro americano, Alan Birkinshaw, se lançar na mesma empreitada, com interpretações de Oliver Reed (Roderick Usher), Donald Pleasence e Romy Windsor. “La Chute de la Maison Usher” surge na Bélgica, em 1992, com realização de Marc Julian Ghens. A série de TV "Tales of Mystery and Imagination", com realização de vários cineastas (James Ryan, Bill Hays, Dejan Sorak, Rod Stewart, Neil Hetherington, Hugh Whysall), data de 1995, e volta a penetrar na casa de Usher (além de incursões por outros textos de Poe), com resultados nulos. Parece mesmo que a série, de tão má, nunca chegou a exibir-se por essa altura na TV, e só agora foi posta a circular em DVD. Infelizmente. Trata-se globalmente de um daqueles produtos excelentes para mostrar em salas de aula de cinema, para demonstrar o que está errado e o que não deve ser feito. Mas há também aquilo que não se ensina, nem pelo absurdo: o mau gosto, a falta de sensibilidade, a total inépcia narrativa. Em 2002, “Usher”, de Curtis Harrington, poderá ser uma versão a considerar (ainda que difícil de encontrar, pelo que ainda não a visionei), com o próprio realizador Curtis Harrington a interpretar dois papéis, Roderick Usher e Madeline Usher. Uma investida “queer”, em 40 minutos que gostaríamos certamente de ter visto, mas não conseguimos
Mas a obra mais carismática de entre todas as retiradas deste conto de Poe terá sido “House of Usher”, de 1960, com a assinatura de Roger Corman, e argumento adaptado por Richard Matheson, um escritor do fantástico norte-americano de muito bom nível. Foi o início do ciclo dedicado por Roger Corman a Edgar Allan Poe. Com uma equipa que variou muito pouco, produção de Roger Corman e James H. Nicholson, música original de Les Baxter, fotografia, de excelente colorido com a assinatura de Floyd Crosby, montagem de Anthony Carras, direcção artística de Daniel Haller e um reduzido elenco onde sobressaia Vincent Price (Roderick Usher), bem acompanhado por Mark Damon (Philip Winthrop), Myrna Fahey (Madeline Usher) e Harry Ellerbe (Bristol). Falemos então do conto, antes de passarmos à versão cinematográfica. Na obra de Poe, o narrador que viaja até casa dos Ushers empreende essa viagem para visitar um velho amigo de juventude, Roderick Usher, que não via há muito, e que lhe escrevera a solicitar companhia nos momentos difíceis por que passava, por motivos de saúde própria e de sua irmã, Madeline. É deste modo que o cavaleiro se aproxima da destroçada casa dos Usher, por caminhos de mau agoiro, como que hipnotizado pelo destino que ali o conduz. No filme Philip Winthrop viaja até àquela mansão amaldiçoada porque se encontra noivo de Madeline, Roderick pede-lhe que se afaste, manda-o embora, insiste, exorta-o, mas Philip permanece na sua, querendo ir embora apenas se for acompanhado da sua amada. Depois, no conto, há várias personagens que se cruzam na casa, no filme quase toda a acção roda à volta de Roderick, Madeline, Philip e um velho criado da casa. Todo o conto é muito intimista, referindo-se a pensamentos de Philip e às considerações de Roderick, que se voltam muito para ele próprio. Trata-se quase de um confronto de duas mentes, de duas vontades, de dois projectos. No filme, obviamente que as acções de concretizam mais no plano da realidade. Corman “mostra” onde Poe evoca, mas a transposição não deixa de ser não só eficaz como mesmo sugestiva. Corman é um cineasta como uma sensibilidade que se coaduna bem com os ambientes e as personagens criadas por Poe, desenvolve climas de um fantástico inquietante sem jogar no primarismo do sangue a jorros e dos efeitos em catadupa, explora sobretudo o suspense perturbador, através de efeitos puramente plásticos, a duração do plano, do movimento, a utilização da banda sonora, o recurso à interpretação. O filme baseia-se, sobretudo, em quatro personagens e uma casa, um palácio à beira da ruína, atravessado por fendas que, hora a hora, vão criando clivagens mais aterrorizadoras, enterrando-se progressivamente num pântano onde a natureza fenece e nada se cria. É a maldição dos Usher a estender-se à paisagem ou esta a estrangular a família no interior do seu palácio a desmoronar-se. Casa e família sucumbem ao mesmo mal. Roderick Usher lamenta-se de uma absoluta hipersensibilidade, algo que quase não o permite contactar com o mundo exterior, uma luz mais intensa violenta-lhe os olhos, qualquer pequeno som atravessa-lhe os tímpanos como um trovão, um sabor mais forte atormenta-o, só suporta tecidos de uma macieza rara, move-se como que pairando sobre o chão… Madeleine parece atreita ao mesmo mal, ambos se declaram, pela voz de Roderick, próximos da morte. Por isso Roderick não permite a Philip partir com a sua amada, que, no entanto, não parece assumir a mesma atitude. Mas a vontade de Roderick é mais forte, e a maldição estende-se sobre o palácio, que no final conhecerá uma dupla “morte”, incendiado e submergido nas águas do pântano, enquanto temas como o incesto e a catalepsia se assenhoreiam da obra e os sepultados vivos saem das criptas com as mãos ensanguentadas e as gargantas roucas de gritarem por socorro. Puro terror de criação Edgar Allan Poe muito bem recriado pela fantasia e o competente talento de Corman, a sua enorme economia de meios, o seu bom gosto visual, o refinamento de um estilo que não pode deixar-se de sublinhar.
A economia de meios é de tal forma que um filme destes é rodado em menos de duas semanas, outro se lhe segue de imediato, rodado com a mesma equipa, um elenco semelhante, os mesmos cenários, iguais adereços e guarda-roupa, de forma a que essa produção continua embarateça o orçamento, permitindo o talento de Corman que estas produções de série B sobrevivam como clássicos e filmes de culto que mantêm, quase cinquenta anos depois, toda a sua magia.
Sobre o mesmo tema, Jesus Franco (ou Jess Franco), em Espanha, no ano de 1982, recoloca as personagens em cena, numa interessante série B, que conheceu diversos títulos: “Revenge in the House of Usher” ou “La Chute de la Maison Usher” ou “Los Crímenes de Usher” ou “El Hundimiento de la Casa Usher” ou “Neurosis” ou “Nevrose” ou “Revolt of the House of Usher” ou “Zombie 5”. O veterano Jesus Franco (mais de 180 títulos na sua filmografia!) nunca foi cineasta para grandes subtilezas, mas o seu cinema, muito popular e por vezes excessivamente oportunista no namoro ao público (no sexo e no gore), conseguia ter alguma graça, numa demonstração de uma certa “inocência” cultural, apesar do realizador manifestar alguns conhecimentos sobre literatura e estética cinematográfica. Curiosamente, Jesus Franco considera esta sua versão de “A Queda da Casa Usher” uma das mais fiéis a Edgar Allan Poe e a sua obra mais pessoal e menos comercial, um verdadeiro “filme de autor”. O filme tem momentos fracos, mas ostenta algumas sequências bastante bem conseguidas num plano plástico, onde as influências do expressionismo são evidentes. Neste aspecto, todas as cenas a preto e branco, que remetem para flash backs, conseguem impressionar pela positiva, muito embora a interpretação dos actores não seja das mais convincentes. Mas globalmente é um filme interessante, que aproxima a Casa Usher de um covil de vampiros, para onde são raptadas mulheres de vida fácil, para abastecerem de sangue a muito debilitada filha de Usher (para lá de outras personagens com gostos afins). Há uma personagem que relembra o velho de “O Coração Revelador”. Há sequência que recordam outros filmes de Fraco (particularmente El Secreto del Dr. Orloff”). Curioso, tanto mais que DVD onde se disponibiliza esta pequena fita de terror contem uma curiosa entrevista com o cineasta espanhol, personagem particularmente singular no universo do cinema fantástico. Nada, porém, que se possa comparar com Roger Corman.
“The House of Usher” volta a interessar os estúdios norte-americanos, uma vez em 1988, com realização a cargo de Alan Birkinshaw, argumento de Michael J. Murray, e interpretação de Oliver Reed (Roderick Usher), Donald Pleasence (Walter Usher) e Romy Windsor; outra já em 2006, numa interessante direcção de Hayley Cloake, sobre argumento de Collin Chang que transporta a história para a actualidade (o que parece quase impossível é assegurado com alguma coerência pelos responsáveis). Uma casa senhorial perdida numa zona rural da província, a morte declarada de Madeline, irmã de Roderick Usher, uma amiga, Jill Michaelson, que vem ao funeral, e que fora antiga namorada de Roderick, e uma governanta intrigante que relembra personagem de “Rebecca” e se chama, por alguma razão, Mrs. Thatcher. A casa não racha mas assusta, não há incêndio ou descalabro que a destrua na derradeira sequência, mas de resto, apesar de passar-se no século XXI, a família sofre das mesmas maldições e doenças afins (com modernos tratamentos a condizer com a época), o incesto não só paira no ar, como se insinua mesmo de forma mais descarada, a danação dos Usher tem razão de ser numa consanguinidade que passa de irmãos para irmãos e de pais para filhos, e a loucura dessa herança que se quer manter a todo o custo acaba por ter os seus dissabores. O filme é discreto, mas mantém um bom clima, uma fotografia aceitável, uma interpretação de desconhecidos que não comprometem. É uma versão que se vê com agrado, numa noite em que não se tiver nada de melhor a fazer (ou se esteja a ver – quase - de castigo as obras de Edgar Allan Poe adaptadas ao cinema!).

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

NOTAS SOBRE EDGAR ALLAN POE NO CINEMA, VI

"THE MANSION OF MADNESS"
Em 1844, Edgar Allan Poe escreveu “The System of Dr. Tarr and Professor Fether” (Feather)”, um conto inicialmente aparecido no nº 5 do vol. XXVIII, da revista “ Graham’s Magazine” (de Novembro), e posteriormente integrado no volume de “Histórias Grotescas e Sérias”. Trata-se de uma obra particularmente interessante, parodiando algumas teorias em voga na altura sobre o tratamento da loucura. O conto, escrito na primeira pessoa do singular por um narrador que visita um castelo isolado, situado numa das províncias do extremo sul de França, onde encontra um estranho Dr. M. Maillard que aí dirige um manicómio, aborda de forma parabólica e algo satírica, a teoria da cura em liberdade, o “sistema da doçura”, no qual os pacientes não são contrariados nas suas alucinações e fantasias, mas antes impulsionados a satisfazer os seus instintos, procurando “curá-los” pelo absurdo. Se alguém pensa ser um galo, pois que se alimente de milho e farináceos, e logo perderá a loucura. O sistema parece, no entanto, não funcionar muito bem, apesar da áurea ganha nos meios científicos, na explicação de Maillard, que leva o visitante a percorrer as instalações da instituição, onde aparecem estranhas personagens, que se reúnem num jantar pantagruélico. É nessa altura que o narrador percebe que, durante a vigência do “sistema da doçura”, os internados se tinham revoltado, encarcerado médicos e enfermeiros e tomado conta do castelo que agora administravam com “um grão de loucura”.
Este conto está na base de um filme mexicano muito curioso, datado de 1973, que se passa em França (como no original de Poe), mas que foi rodado no México, falado em inglês, dirigido por um mítico Juan López Moctezuma e que conheceu vários títulos: “The Mansion of Madness”, “Dr. Goudron's System”, “Dr. Tarr's Pit of Horrors”, “Dr. Tarr's Torture Dungeon”, “Edgar Allan Poe: Dr. Tarr's Torture Dungeon”, “House of Madness”, “La Mansión de la Locura” ou “The System of Dr. Tarr and Professor Feather”.
Juan López Moctezuma é herdeiro de uma tradição mexicana de filmes de terror, que teve na presença de Luís Buñuel neste país uma forte motivação para uma inspiração surrealista e anti clerical. Moctezuma foi colaborador de Alejandro Jodorowsky, conheceu Fernando Arrabal e pode dizer-se que fez parte de um grupo que nos anos 60-70 se intitulou “Panic”, onde militava ainda Roland Topor. O “Movimento Pânico” tinha como musa a deusa Pã e uma forte influência de Buñuel e dos surrealistas franceses, bem assim como do teatro da crueldade de Antonin Artaud. A proposta era anárquica, surreal, caótica, libertina, fantástica, grotesca, libertadora… Durou mais ou menos até 1973.
Compreende-se assim a aproximação de Juan López Moctezuma da obra de Poe, particularmente do conto em questão, onde se defendem teses libertárias em relação à psiquiatria e à loucura. Aliás, parece que o próprio Poe se inspirou nos trabalhos de Philippe Pinel (1745-1826), o pai da psiquiatria francesa, que iniciou sistemas de cura benigna, libertando os doentes das grilhetas e exigindo a sua separação dos presos de delito comum e das prostitutas, no manicómio de Salpêtrière. Também William Tuke, em Inglaterra, e Dorethea Dix, nos EUA, iniciaram, no fim do século XVIII, princípios do XIX, idênticas lutas a favor de uma maior humanidade do tratamento das doenças mentais. Edgar Allan Poe mais não faz do que adaptar a conto as teorias que circulava no seu tempo. Juan López Moctezuma, por seu turno, fará o mesmo, adaptando esse conto ao cinema, ainda que com profundas alterações. Enquanto no conto, o manicómio é um espaço fechado, limpo e quase sofisticado, em Moctezuma os loucos fazem esperas a visitantes, vestidos de soldados e armados, evoluem livremente pela floresta circundante, e habitam um palácio em ruínas, completamente deteriorado e escalavrado (grande parte do filme foi rodado numa fábrica de têxteis há muito abandonada).
Em ambos os casos, porém, o que se condena é anarquia e o caos a que conduz uma liberdade mal entendida, moralidade que se ilustra através de certas situações de crítica satírica e de momentos de cruel paródia, dados de forma subtil. Aliás existe como que uma dualidade de olhar, ora crítico, ora complacente para com a loucura instala, o que poderá igualmente ter uma segunda leitura, fazendo equivaler, aos olhos do público, loucos e sãos de espíritos, sem que se saiba muito bem onde começam uns e acabam os outros. O que contem igualmente alguma crítica: muitas vezes são os loucos que ocupam os lugares dos ditos sãos de mentes, sem que nada aparentemente o faça notar.
Primeira experiência cinematográfica de Juan López Moctezuma, “The Mansion of Madness” não é uma obra-prima, mas mostra-se uma surpresa muito curiosa e um filme de indiscutível interesse, quer como aproximação de um tema querido do fantástico, quer como estilo de narrativa, que oscila entre o terror gótico e o humor de uns Monty Python, o exacerbamento visual de um Federico Fellini ou de um “Marat-Sade”, de Peter Brook. Há uma tendência para uma representação teatral que faz lembrar processos do “The Livig Theatre” e, simultaneamente, uma enorme cinefilia que não hesita em repescar réplicas de vários clássicos.
O filme é plasticamente muito curioso, acompanhando-se com prazer, muito embora não seja uma produção de orçamento elevado. Mas o bom gosto de cenários e guarda-roupa e a intencionalidade da narrativa remetem esta obra para o nível dos filmes não muito conhecidos do grande público, mas que merecem seguramente figurar na lista “de culto” de muitos aficionados do fantástico. Poe deveria gostar desta obra e sentir com ela alguma cumplicidade.
Anos depois, o checo Jan Svankmajer, partindo deste mesmo conto de Edgar Alan Poe (e também de “O Sepultado Vivo”) dirige “Lunacy”, “um filme de terror filosófico”, nas palavras do seu autor. “Uma fantasia transgressora que combina imagem real e animação. Nesta delirante alegoria à sociedade contemporânea encontramos o jovem Jean Berlot, um rapaz assombrado por terríveis pesadelos. Berlot trava conhecimento com Marquiz (inspirado no divino Marquês de Sade), um aristocrata com um glorioso apetite por blasfémias e orgias, e inicia uma odisseia “terapêutica”. Como temas centrais a liberdade, a manipulação e a repressão exercidas pela civilização.” O filme passou numa das edições do Indie Lisboa, de onde se retiram os dados.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

NOAS SOBRE EDGAR ALLAN POE NO CINEMA, V

AS VÁRIAS VERSÕES
CINEMATOGRÁFICAS DE “O CORVO”
Um dos poemas mais célebres de Edgar Allan Poe, senão mesmo o mais conhecido e citado, é “The Raven” (O Corvo), obviamente uma das suas obras igualmente mais adaptadas ao cinema. Sabe-se que, logo em 1912, nos EUA, surgiu uma primeira versão, de que se desconhece autor, mas de que se conhecem os intérpretes (Guy Oliver, como Edgar Allan Põe e Muriel Ostriche), e que se sabe ter sido uma produção Eclair American.
A adaptação seguinte data de 1935, novamente americana, uma produção Universal Pictures, com realização de Lew Landers. Este “The Raven”, com argumento de David Boehm, Florence Enright, Michael L. Simmons, Dore Schary, Guy Endore, Clarence Marks, Jim Tully e John Lynch, tinha um elenco de peso na época. Nada menos que os dois mais famosos “monstros” da altura, Boris Karloff e Bela Lugosi, respectivamente Frankenstein e Drácula dessa década de ouro do fantástico. Lew Landers, nascido em Nova Iorque, mas que inicialmente assinava as suas obras com o nome de baptizado, Louis Friedlander, foi um dos realizadores mais prolíferos do cinema norte-americano. “The Raven”, do início da sua carreira, será mesmo das suas obras de maior qualidade, mantendo, tal como muitas outras desses anos, uma larga dependência do cinema expressionista alemão da década precedente.
Tal como muitas outras adaptações de obras de Poe, este “The Raven” contenta-se em manter o título, algumas obsessões temáticas e um clima que se poderá dizer ter origem no belíssimo poema. Bela Lugosi interpreta a figura de um estranho doutor Richard Vollin, grande admirador de Poe que, nas horas livres da sua actividade de médico, se entretém a reconstituir, na cava da sua casa, uma verdadeira câmara de torturas, fabricando ele próprio cada um dos instrumentos de suplício imaginados por Edgar Allan Poe. Depois a história vai evoluindo em função de um crescendo de terror que conduzirá as vítimas a esse território de horror, encimado pelo célebre pêndulo da morte, mas onde não deixa de ter lugar igualmente uma câmara que se fecha sobre si própria, após o que as paredes começam a movimentarem-se no sentido de esmagar quem esteja aprisionado no seu interior.
Para introduzir um elemento romântico indispensável ao conforto das plateias, Friedlander inventa um paixão louca de Vollin por uma jovem que ele salva da morte, depois de um aparatoso acidente de automóvel, com que abre o filme, e que hipnotiza por forma a roubá-la ao seu noivo. A frágil figura da mulher perante as arremetidas brutais do sábio louco, eis as premissas habituais ao género. Há outras referências ao poema de Poe: a jovem que recupera inteiramente do acidente é bailarina e interpreta no teatro uma adaptação de “The Raven”. Vollin fica defenitivamente apaixonado pela mulher e pela sua interpretação, o que agudiza as situações e irá conduzir ao grande clímax.
Entretanto, pelas ruas da cidade, Edmond Bateman (Boris Karloff, aqui com um papel secundário, muito curioso, nitidamente subsidiário do seu “Frankenstein”), um conhecido e temido criminoso, esconde-se e bate à porta de Vollin, procurando que este o transforme, através de uma operação de plástica estética, numa noutra pessoa, e assim passar desapercebido. Mas o resultado não é o melhor. E tudo se conjuga para um final em crescendo, na tenebrosa câmara de horrores que o médico criou. O filme consegue, com simplicidade e eficácia, na sua modéstia de orçamento, criar um bom clima de inquietação e sedução, com planos bem delineados, enquadramentos desassossegados, iluminações perturbantes e personagens de algum sadismo, sabiamente aproveitadas. O corvo impera ao longo da obra, como presença obsidiante.
Posteriormente houve muitas outras versões, que desconhecemos (quase todas) por completo. Um episodio da série televisiva espanhola, “Historias para no dormir", precisamente chamada “El Cuervo” (1967), com realização de Narciso Ibáñez Serrador, com Rafael Navarro na figura de Edgar Allan Põe; uma adaptação alemã, “Der Wilde Rabe”, de Peter Sempel (RFA, 1985); um episódio, “Treehouse of Horror”, da série de TV, "The Simpsons", com direcção de David Silverman; uma nova incursão espanhola, desta feita com a assinatura de Tinieblas González; uma curta-metragem com o título “The Raven... Nevermore” ou “El Cuervo” e Gary Piquer na personagem de Edgar Allan Põe; finalmente duas novas cinematizações americanas, uma nova curta-metragem, desta feita com a assinatura de Peter Bradley (EUA, 2003), e uma longa de 2006, dirigida por Ulli Lommel, que escreveu também o argumento, e entregou a interpretação a Jillian Swanson (Lenore), Victoria Ullmann (Annabel Lee), e Michael Barbour (Edgar Allen Poe). Ulli Lommel é conhecido sobretudo por ter assinado “The Boogeyman”, um filme de terror de culto entre os fanáticos do género, sobretudo os que apreciam obras de pequeno orçamento, alguma imaginação e violência a preceito. Este “O Corvo” é, de certa forma, uma desilusão, ainda que mantenha algumas dessas características: o orçamento deverá ter sido mínimo, os actores são de terceira escolha (se é que houve escolha!), os cenários são minimalistas, a estrutura deficiente, mas bastante pretensiosa, o resultado não deixa lugar a muitas dúvidas.
Como se sabe, o poema de Poe fala da fatal tristeza de alguém que chora uma Lenora que partiu, e de um corvo que aparece, vindo da escuridão da noite, trazendo a mensagem de um “Nunca Mais”, ou seja da inexorabilidade da morte e da solidão que ela deixa nos que ficam chorosos de saudade. Partindo desta premissa, aberta a todas as interpretações, tudo é possível, desde que apareçam dois ou três símbolos carismáticos: o corvo, o nome de Lenora, a morte.
No filme de Ulli Lommel, Lenora em criança ouve o avô ler poemas de Edgar Allan Põe, o que lhe provoca pesadelos de terror. Mais tarde, encontramo-la, em Los Angeles, vocalista de uma banda, e perseguida por um assassino que vai dizimando todos os amigos à sua volta até chegar ao confronto final com a própria Lenora. Rara a excitação e a inquietação provocada por esta série B que procura elidir a falta de ideias com uma montagem modernaça, obcecada por postes e linhas de cabos eléctricos (o que tem a sua justificação, no argumento). Nada de muito extraordinário, portanto.
Já no século XXI, também na Argentina, em 2007, surgiu “El Cuervo”, uma média metragem de 30 minutos, dirigida por Richie Ercolalo. No meio destas versões todas tivemos “Der Rosenkönig” ou “Le Roi des Roses” (O Rei das Rosas), do alemão Werner Schroeter (RFA, França, Portugal, 1986). Filme estranho e invulgar é este, obra romântica e demencial, construída em forma de poema, sem obedecer a qualquer tipo de narrativa clássica, sem uma intriga exposta de forma linear. Werner Schroeter, um dos chefes de fila do novo cinema alemão surgido nos anos 60-70, procura sobretudo um encadeado de imagens, personagens, situações, sons, vozes (em diferentes idiomas), músicas (de origem variada, do ópera às ladainhas populares), luzes, que restituam um clima, uma ambiência fantástica, onírica. Neste aspecto, esta é uma das obras onde se sente mais a proximidade de Edgar Allan Poe, e do seu poema “The Raven”, de que se ouvem, lidos, alguns dos seus versos, bem assim como excertos de “City in the Sea” ou “Alone”, do mesmo autor, poesias de Pablo Neruda, fragmentos de “Chants de la Vie”, de Abou Kassem Ech’ Chabbi, um pedaço de uma peça de rádio, "série negra", de 1943, dita por Gloria Swanson, além de vozes dos padres católicos napolitanos e de alguns contos populares portugueses.
O filme parece ter sido escrito dia a dia ao longo das filmagens, num improviso constante ou numa “rêverie” continua, tanto por Werner Schroeter, como pela sua actriz predilecta, Magdalena Montezuma (que se chamava verdadeiramente Erica Kruger), e que aqui se despedia do cinema e da vida.
Rodado no nosso país, pelo produtor Paolo Branco, com vários portugueses na ficha técnica e no elenco, “O Rei das Rosas” fala-nos de uma mulher, Anna, alemã de nascimento, a viver em Portugal, num palacete abandonado numa quinta de mau augúrio, acompanhada por Albert, um filho que cultiva rosas e paixões funestas, nomeadamente por Fernando, um jovem que apanha um dia a roubar na sua capela, e que transforma num prisioneiro da sua sensualidade e ardor.
Filme de uma perversidade que se instala à medida que o tempo passa, obra sobre o amor e morte, por vezes mórbido, de maligna crueldade e de terrível beleza, "Le Roi des Roses" joga com um imaginário que tem muito a ver com a obra de um Mishima, de “Confissões de uma Máscara” a “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” (há uma concordância temática e de atmosfera quase obsessiva: mãe e filho, ausência da figura do pai, crueldade para com animais, o mar como referência de liberdade, exaltação do sofrimento, homossexualismo, imagem de martiriologia, São Sebastião, etc.).
Celebração, ritualismo, oratória, a simbologia mais forte inscreve-se a cada passo: mãe e filho na mesma cama numa sugestão de incesto que o filho renega, o sangue que escorre das rosas e passa ao corpo imolado de Fernando, a lavagem do corpo e a dependência de uma sensualidade exarcebada, o gato morto, a rã aprisionada numa gaiola dentro de água, o fogo redentor nas imagens finais, a morte suspensa de cada fotograma… A versão de “The Raven” mais conhecida, porém, é de Roger Corman, realizada em 1963, e que é o quinto filme da série dedicada a Edgar Allan Poe por este cineasta (os anteriores foram “A Queda da Casa Usher”, 1960; “O Fosso e o Pêndulo”, 1961, “O Sepultado Vivo”, 1962, “A Maldita, o Gato e a Morte”, 1962; a que se seguiram “A Máscara da Morte Vermelha”, 1964, e “O Túmulo de Ligeia”, 1964).
Neste conjunto de títulos, todos eles de forte inspiração fantástica, inscrevendo-se no mais puro terror gótico, “O Corvo” faz figura de desalinhado, pois, se mantém todas as características de série, quanto a valores de produção, equipa técnica e artística, cenários, guarda roupa, etc, acrescenta-lhe uma outra que só tinha sido pressentida aqui e ali ao longo dos outros filmes: o humor. Na verdade pode considerar-se “O Corvo”uma comédia fantástica, baseando muito do seu humor na presença de três actores míticos no género (Vincent Price, Peter Lorre e Boris Karloff) que aqui se auto parodiam com imensa subtileza e graça, criando situações divertidíssimas e saboreando de forma incomparável o seu trabalho. Nem o facto de Boris Karloff se encontrar doente, durante as filmagens, retirou algum enacnto ao resultado final, acrescentando-lhe até algum se possível: como Karloff estava doente, o duelo final entre ele e Vincent Price efectua-se com os actores sentados em enormes poltronas, o que acaba por ampliar o efeito da paródia. De resto, e para completar o que deve ser dito sobre o elenco, brilhante, há que referir a presença do então muito jovem Jack Nicholson, num papel que prenuncia já as geniais loucuras que se lhe seguiram, e ainda a bela Hazel Court, outra presença regular neste conjunto de filmes.
Uma das razões da qualidade desta série, é o facto de ter alguns escritores de grande qualidade a adaptarem os contos, e neste caso o poema, do celebrado escritor americano. Richard Matheson é um nome grande do romance fantástico e a ele se deve a adaptação do poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe (outros escritores ao serviço de Corman nesta série foram, por exemplo, Charles Beaumont e Robert Towne).
Tudo se passa entre mágicos: o sorumbático Erasmus Craven (Vicent Price), que vive solitário no seu castelo, saudoso da sua Lenora desaparecida, vê inesperadamente entrar pela janela dentro um corvo que fala e que lhe confessa ser um antigo mago, enfeitiçado durante uma rija de mágicos, e que lhe pede a salvação, ou seja, uma mezinha que o faça regressar à sua antiga forma humana. Craven acaba por reunir os condimentos necessários à sopa de pedra que trará Bedlo (Peter Lorre) de novo à sua existência normal. Nessa altura, Bedlo confessa a Craven que a mulher deste, a tão suspirada Lenora, não se encontra morta e sepultada no esquife que o marido venera, mas sim nas mãos do perverso Scarabus (Boris Karloff), que vive por ali perto num outro castelo amaldiçoado. Para lá se dirigem, e por lá dirimem o que têm a dirimir. Com algum suspense e muita diversão.
O filme volta a mostrar como, com meios reduzidos mas alguma imaginação, muito talento e sensibilidade se consegue erguer uma obra particularmente interessante, recuperando algo do universo de Poe, e conceber em simultâneo um filme esteticamente de algum requinte e de assegurado sucesso popular.

THE RAVEN, 2 VERSÕES E 4 TRADUÇÕES

"O Corvo", o mais célebre poema de Edgar Allan Poe, teve duas versões e inúmeras traduções. Aqui ficam as duas versões do autor e quatro traduções brilhantes, todavia, cada uma delas tão representativa de Edgar Allan Poe como de cada um dos escritores que as traduziram (Baudelaire, Malharmé, Fernando Pessoa e Machado de Assis). O que demonstra bem que quem lê, o faz segundo a sua experiência e sensibilidade, pelo que não há duas "leituras" iguais, e que traduzir pode não ser trair, mas nunca reproduz a experiência do original.
THE RAVEN

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
" 'Tis some visiter," I muttered, "tapping at my chamber door —
Only this, and nothing more."

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; — vainly I had tried to borrow
From my books surcease of sorrow — sorrow for the lost Lenore —
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore —
Nameless here for evermore.

And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me — filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
" 'Tis some visiter entreating entrance at my chamber door —
Some late visiter entreating entrance at my chamber door; —
This it is, and nothing more."

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
"Sir," said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you" — here I opened wide the door; ——
Darkness there, and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore!"
This I whispered, and an echo murmured back the word, "Lenore!"
Merely this, and nothing more.

Then into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon I heard again a tapping somewhat louder than before.
"Surely," said I, "surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore —
Let my heart be still a moment and this mystery explore;—
'Tis the wind, and nothing more!"

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not an instant stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door —
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door —
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven, thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly grim and ancient raven wandering from the Nightly shore —
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the raven, "Nevermore."

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning — little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no sublunary being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door —
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as "Nevermore."

But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing farther then he uttered — not a feather then he fluttered —
Till I scarcely more than muttered, "Other friends have flown before —
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before."
Quoth the raven, "Nevermore."
Wondering at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster — so, when Hope he would adjure,
Stern Despair returned, instead of the sweet Hope he dared adjure —
That sad answer, "Nevermore!"

But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;
Then upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore —
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking "Nevermore."

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamplight gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamplight gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by angels whose faint foot-falls tinkled on the tufted floor.
"Wretch," I cried, "thy God hath lent thee — by these angels he hath sent thee
Respite — respite and Nepenthe from thy memories of Lenore!
Let me quaff this kind Nepenthe and forget this lost Lenore!"
Quoth the raven, "Nevermore."

"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird or devil! —
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate, yet all undaunted, on this desert land enchanted —
On this home by Horror haunted — tell me truly, I implore —
Is there — is there balm in Gilead? — tell me — tell me, I implore!"
Quoth the raven, "Nevermore."

"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us — by that God we both adore —
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore —
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore."
Quoth the raven, "Nevermore."

"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting —
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! — quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!"
Quoth the raven, "Nevermore."

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted — nevermore!

Texto de Edgar Allan Poe, primeira edição, aparecido na revista “American Review”, em Fevereiro de 1845.
THE RAVEN

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore —
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
"'Tis some visiter," I muttered, "tapping at my chamber door —
Only this and nothing more."
Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; — vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow — sorrow for the lost Lenore —
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore —
Nameless here for evermore.

And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me — filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
"'Tis some visiter entreating entrance at my chamber door —
Some late visiter entreating entrance at my chamber door; —
This it is and nothing more."

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
"Sir," said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you" — here I opened wide the door; ——
Darkness there and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore?"
This I whispered, and an echo murmured back the word, "Lenore!" —
Merely this and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
"Surely," said I, "surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore —
Let my heart be still a moment and this mystery explore;—
'Tis the wind and nothing more!"

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door —
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door —
Perched, and sat, and nothing more. [column 5:]


Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven, thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore —
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the Raven "Nevermore."

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning — little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door —
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as "Nevermore."

But the Raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing farther then he uttered — not a feather then he fluttered —
Till I scarcely more than muttered "Other friends have flown before —
On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before."
Then the bird said "Nevermore."

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utters is its only stock and store
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore —
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of 'Never — nevermore'."

But the Raven still beguiling my sad fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore —
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking "Nevermore."

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er,
But whose velvet-violet lining with the lamp-light gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
"Wretch," I cried, "thy God hath lent thee — by these angels he hath sent thee
Respite — respite and nepenthe, from thy memories of Lenore;
Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!"
Quoth the Raven "Nevermore."

"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird or devil! —
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted —
On this home by Horror haunted — tell me truly, I implore —
Is there — is there balm in Gilead? — tell me — tell me, I implore!"
Quoth the Raven "Nevermore."

"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us — by that God we both adore —
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore —
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore."
Quoth the Raven "Nevermore."

"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting —
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! — quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!"
Quoth the Raven "Nevermore."

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted — nevermore!

Versão final, revista por Põe, aparecida em “Richmond Semi-Weekly Examiner”, em 1849.
LE CORBEAU

Une fois, sur le minuit lugubre, pendant que je méditais, faible et
fatigué, sur maint précieux et curieux volume d'une doctrine oubliée,
pendant que je donnais de la tête, presque assoupi, soudain il se fit un
tapotement, comme de quelqu'un frappant doucement, frappant à la porte
de ma chambre. "C'est quelque visiteur, - murmurai-je, - qui frappe à la
porte de ma chambre; ce n'est que cela, et rien de plus."

Ah! distinctement je me souviens que c'était dans le glacial décembre,
et chaque tison brodait à son tour le plancher du reflet de son agonie.
Ardemment je désirais le matin; en vain m'étais-je efforcé de tirer de
mes livres un sursi à ma tristesse, ma tristesse pour ma Léonore perdue,
pour la précieuse et rayonnante fille que les anges nomment Lénore, - et
qu'ici on ne nommera jamais plus.

Et le soyeux, triste et vague brissement des rideaux pourprés me
pénétrait, me remplissait de terreurs fantastiques, inconnues pour moi
jusqu'à ce jour; si bien qu'enfin, pour apaiser le battement de mon
coeur, je me dressai, répétant: "C'est quelque visiteur qui sollicite
l'entrée à la porte de ma chambre; - c'est cela même, et rien de plus."

Mon âme en ce moment se sentit plus forte. N'hésitant donc pas plus
longtemps: "Monsieur, - dis-je, - ou madame, en vérité, j'implore votre
pardon; mais le fait est que je sommeillais, et vous êtes venu taper à
la porte de ma chambre, qu'à peine étais-je certain de vous avoir
entendu." Et alors j'ouvris la porte toute grande; - les ténèbres, et
rien de plus!

Scrutant profondément ces ténèbres, je me tins longtemps plein
d'étonnements, de crainte, de doute, révant des rêves qu'aucun mortel
n'a jamais osé réver; mais le silence ne fut pas troublé, et
l'immobilité ne donna aucun signe, et le seul mot proféré fut un nom
chuchoté: "Léonore!" - C'était moi qui le chuchotais, et un écho à son
tour murmura ce mot: "Lénore!" Purement cela, et rien de plus.

Rentrant dans ma chambre, et sentant en moi toute mon âme incendiée,
j'entendis bientôt un coup un peu plus fort que le premier. "Sûrement, -
dis-je, - sûrement il y a quelque chose aux jalousies de ma fenêtre;
voyons donc ce que c'est, et explorons ce mystère. Laissons mon coeur se
calmer un instant, et explorons ce mystère; c'est le vent, et rien de
plus."

Je poussais alors le volet, et, avec un tumultueux battement d'ailes,
entra un majestueux corbeau digne des anciens jours. Il ne fit pas la
moindre révérence, il ne s'arrêta pas, il n'hésita pas une minute; mais,
avec la mine d'un lord ou d'une lady, il se percha au-dessus de la porte
de ma chambre; il se percha sur un buste de Pallas juste au-dessus de la
porte de ma chambre; - il se percha, s'installa, et rien de plus.

Alors, cet oiseau d'ébène, par la gravité de son maintien et la sévérité
de sa physionomie, induisant ma triste imagination à sourire: "Bien que
la tête, - lui dis-je, - soit sans huppe et sans cimier, tu n'es certes
pas un poltron, lugubre et ancien corbeau, voyageur parti des rivages de
la nuit. Dis-moi quel est ton nom seigneurial aux rivages de la nuit
plutonienne! "Le corbeau dit: Jamais plus!"

Je fus émerveillé que ce disgracieux volatile entendît si facilement la
parole, bien que sa réponse n'eût pas un bien grand sens et ne me fît
pas d'un grand secours; car nous devons convenir que jamais il ne fut
donné à un homme vivant de voir un oiseau au-dessus de la porte de sa
chambre, un oiseau ou une bête sur un buste sculpté au-dessus de la
porte de sa chambre, se nommant d'un nom tel que - Jamais plus!

Mais le corbeau, perché solitairement sur le buste placide, ne proféra
que ce mot unique, comme si dans ce mot unique il répandait toute son
âme. Il ne prononça rien de plus; il ne remua pas une plume, - jusqu'à
ce que je me prisse à murmurer faiblement: "D'autres amis se sont déjà
envolés loin de moi; vers le matin, lui aussi, il me quittera comme mes
anciennes espèrances déjà envolées." L'oiseau dit alors: "Jamais plus!"

Tressaillant au bruit de cette réponse jetée avec tant d'à-propos: "Sans
doute, - dis-je, - ce qu'il prononce est tout son bagage de savoir,
qu'il a pris chez quelque maître infortuné que le Malheur impitoyable a
poursuivi ardement, sans répit, jusqu'à ce que ses chansons n'eussent
plus qu'un seul refrain, jusqu'á ce que le De profundis de son Espérance
eût pris ce mélancolique refrain: "Jamais, jamais plus!"

Mais, le corbeau induisant encore toute ma triste âme à sourire, je
roulai tout de suite un siège à coussins en face de l'oiseau et du buste
et de la porte; alors, m'enfonçant dans le velours, je m'appliquai à
enchaîner les idées aux idées, cherchant ce que cet augural oiseau des
anciens jours, ce que ce triste, disgracieux, sinistre, maigre et
augural oiseau des anciens jours voulait faire entendre en croassant son
- Jamais plus!

Je me tenais ainsi, rêvant, conjecturant, mais n'adressant plus une
syllabe à l'oiseau, dont les yeux ardents me brûlaient maintenant
jusqu'au fond du coeur; je cherchai à deviner cela, et plus encore, ma
tête reposant à l'aise sur le velours du coussin que caressait la
lumière de la lampe, ce velours violet caressé par la lumière de la
lampe que sa tête, à Elle, ne pressera plus, - ah! jamais plus!

Alors, il me sembla que l'air s'épaississait, parfumé par un encensoir
invisible que balançaient des séraphins dont les pas frôlaient le tapis
de la chambre. "Infortuné! - m'écriai-je, - ton Dieu t'a donné par ses
anges, il t'a envoyé du répit, du répit et du népenthès dans tes
ressouvenirs de Lénore perdue!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

"Phrophète! - dis-je, - être de malheur! oiseau ou démon, mais toujours
phrophète! que tu sois un envoyé du Tentateur, ou que la tempête t'ait
simplement échoué, naufragé, mais encore intrépide, sur cette terre
déserte, ensocelée, dans ce logis par l'Horreur hanté, - dis-moi
sincèrement, je t'en supplie, existe-t-il ici un baume de Judée! Dis,
dis, je t'en supplie!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

"Phrophète! - dis-je, - être de malheur! oiseau ou démon! Toujours
phrophète! par ce ciel tendu sur nos têtes, par ce Dieu que tous deux
nous adorons, dis à cette âme chargée de douleur si, dans le Paradis
lointain, elle pourra embrasser une fille sainte que les anges nomment
Lénore, embrasser une précieuse et rayonnante fille que les anges
nomment Léonore." Le corbeau dit: "Jamais plus!"

"Que cette parole soit le signal de notre séparation, oiseau ou démon! -
hurlai-je en me redressant. - Rentre dans la tempête, retourne au rivage
de la nuit plutonienne; ne laisse pas ici une seule plume noire comme
souvenir du mensonge que ton âme a proféré; laisse ma solitude inviolée;
quitte ce buste au-dessus de ma porte; arrache ton bec de mon coeur, et
précipite ton spectre loin de ma porte!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

Et le corbeau, immuable, est toujours installé, toujours installé sur le
buste pâle de Pallas, juste au-dessus de la porte de ma chambre; et ses
yeux ont toute la semblance des yeux d'un démon qui rêve; et la lumière
de la lampe, en ruisselant sur lui, projette son ombre sur le plancher;
et mon âme, hors du cercle de cette ombre qui gît flottant sur le
plancher, ne pourra plus s'élever, - jamais plus!

(Tradução de Charles Baudelaire, 1856)
LE CORBEAU

Une fois, par un minuit lugubre, tandis que je m'appesantissais, faible
et fatigué, sur maint curieux et bizarre volume de savoir oublié, tandis
que je dodelinais la tête, somnolant presque, soudain se fit un heurt,
comme de quelqu'un frappant doucement, frappant à la porte de ma
chambre, cela seul et rien de plus

Ah! distinctement je me souviens que c'était en le glacial décembre :
et chaque tison, mourant isolé, ouvrageait son spectre sur le sol.
Ardemment je souhaitais le jour; vainement j'avais cherché d'emprunter
à mes livres un sursis au chagrin - au chagrin de la Léonore perdue -
de la rare et rayonnante jeune fille que les anges nomment Lénore -
de nom! pour elle ici, non, jamais plus!

Et de la soie l'incertain et triste bruissement en chaque rideau purpural
me traversait, m'emplissait de fantastiques terreurs pas senties
encore : si bien que, pour calmer le battement de mon coeur, je
demeurais maintenant à répéter : C'est quelque visiteur qui sollicite
l'entrée, à la porte de ma chambre; quelque visiteur qui sollicite l'entrée
à la porte de ma chambre; c'est cela et rien de plus

Mon âme se fit subitement plus forte et, n'hésitant davantage :
<> Ici j'ouvris grande
la porte : les ténèbres et rien de plus

Loin dans l'ombre regardant, je me tins longtemps à douter, m'étonner
et craindre, à rêver des rêves qu'aucun mortel n'avait osé rêver encore ;
mais le silence ne se rompit point et la quiétude ne donna de signe ;
et le seul mot qui se dit, fut le mot chuchoté <> je le
chuchotai et un écho murmura de retour le mot <> purement
cela et rien de plus

Rentrant dans la chambre, toute l'âme en feu, j'entendis bientôt un
heurt en quelque sorte plus fort qu'auparavant. <>

Au large je poussai le volet, quand, avec maints enjouement et agitation
d’ailes, entra un majestueux corbeau des saints jours de jadis. Il ne
fit pas la moindre révérence, il ne s’arrêta ni n’hésita un instant : mais,
avec une mine de lord ou de lady, se percha au-dessus de la porte de
ma chambre ; se percha sur un buste de Pallas, juste au-dessus de la
porte de ma chambre ; se percha, siégea et rien de plus

Alors cet oiseau d’ébène induisant ma triste imagination au sourire,
par le grave et sévère décorum de la contenance qu’il eut : <> Le Corbeau dit : <>

Je m’émerveillai fort d’entendre ce disgracieux volatile s’énoncer aussi
clairement, quoique sa réponse n’eût que peu de sens et peu d’à-propos ;
car on ne peut s’empêcher de convenir que nul homme vivant n’eut
encore l’heur de voir un oiseau au-dessus de la porte de sa chambre
- un oiseau ou toute autre bête sur le buste sculpté au-dessus de la porte
de sa chambre -, avec un nom tel que : <>

Mais le Corbeau perché solitairement sur ce buste placide, parla ce
seul mot comme si son âme, en ce seul mot, il la répandait. Je ne proférai
donc rien de plus ; il n’agita donc pas de plume, jusqu’à ce que je
fis à peine davantage que marmotter : <> Alors l’oiseau dit : <>

Tressaillant au calme rompu par une réplique si bien parlée ; <>

Le Corbeau induisant toute ma triste âme encore au sourire, je roulai
soudain un siège à coussins en face de l’oiseau, et du buste, et de la
porte ; et m’enfonçant dans le velours, je me pris à enchaîner songerie
à songerie, pesant à ce que cet augural oiseau de jadis, à ce que
ce sombre, disgracieux, sinistre, maigre, et augural oiseau de jadis
signifiait en croissant : <>

Cela, je m’assis occupé à le conjecturer, mais n’adressant pas une syllabe
à l’oiseau dont les yeux de feu brûlaient, maintenant, au fond de mon
sein ; cela et plus encore, je m’assis pour le devine, ma tête reposant
à l’aise sur la housse de velours des coussins que dévorait la lumière
de la lampe, housse violette de velours qu’Elle ne pressera plus, ah!
jamais plus.

L’air, me sembla-t-il, devint alors que dense, parfumé selon un
encensoir invisible balancé par les Séraphins dont le pied, dans la chute
tintait sur l’étoffe du parquet. <> Le Corbeau dit : <>

Et le Corbeau, sans voleter, siège encore, siège encore sur le buste pallidede Pallas, juste au-dessus de la porte de ma chambre, et ses yeux onttoute la semblance des yeux d’un démon qui rêve, et la lumière de la lampe, ruisselant sur lui, projette son ombre à terre : et mon âme,
de cette ombre qui gîte flottante à terre ne s’élèvera - jamais plus.

(tradução de Stephane Mallarmé)
O CORVO

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.

É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."

Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".

Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais

Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!

Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!
(Tradução de Fernando Pessoa)
O CORVO

Em certo dia, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais".
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial Dezembros;

Cada brasa do lar sobre o colchão refletia
A sua última agonia.
Eu ansioso pelo Sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e "Com efeito,
(Disse), é visita amiga e retardada
"Que bate a estas horas tais.
"É visita que pede à minha porta entrada:
"Há de ser isso e nada mais".

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo, e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
"Mas como eu, precisando de descanso
"Já cochilava, e tão de manso e manso,
"Batestes, não fui logo, prestemente,
"Certificar-me que aí estais".
Disse; a porta escancar, acho a noite somente,
somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dilecta,
Lenora, tu, com um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos,
"Eia, fora o temor, eia, vejamos
"A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais,
"Devolvamos a paz ao coração medroso,
"Obra do vento, e nada mais".

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
de um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gosto severo, - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das nocturnas plagas
"Vens, embora a cabeça nua tragas,
"Sem topete, não és ave medrosa,
"Dize os teus nomes senhoriais;
"Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse,
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
"Tantos amigos tão leais!
"Perderei também este em regressando a aurora".
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
"Que ele trouxe da convivência
"De algum mestre infeliz e acabrunhado
"Que o implacável destino há castigado
"Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
"Que dos seus cantos usuais
"Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
"Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez nesse momento
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E, mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjecturando fui, tranquilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da Lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível:
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
"Manda repouso à dor que te devora
"Destas saudades imortais.
"Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora".
E o corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Ave ou demónio que negrejas!
"Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
"Onde reside o mal eterno,
"Ou simplesmente náufrago escapado
"Venhas do temporal que te há lançado
"Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
"Tem os seus lares triunfais,
"Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Ave ou demónio que negrejas!
"Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
"Por esse céu que além se estende,
"Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
"Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
"No Éden celeste a virgem que ela chora
"Nestes retiros sepulcrais,
"Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o corvo disse: "Nunca mais!"

"Ave ou demónio que negrejas!
"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!
"Regressando ao temporal, regressa
"À tua noite, deixa-me comigo...
"Vai-te, não fique no meu casto abrigo
"Pluma que lembre essa mentira tua.
"Tira-me ao peito essas fatais
"Garras que abrindo vão a minha dor já crua"
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demónio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais.

(tradução de Machado de Assis)