terça-feira, 16 de dezembro de 2008

NOTAS SOBRE EDGAR ALLAN POE NO CINEMA, VI

"THE MANSION OF MADNESS"
Em 1844, Edgar Allan Poe escreveu “The System of Dr. Tarr and Professor Fether” (Feather)”, um conto inicialmente aparecido no nº 5 do vol. XXVIII, da revista “ Graham’s Magazine” (de Novembro), e posteriormente integrado no volume de “Histórias Grotescas e Sérias”. Trata-se de uma obra particularmente interessante, parodiando algumas teorias em voga na altura sobre o tratamento da loucura. O conto, escrito na primeira pessoa do singular por um narrador que visita um castelo isolado, situado numa das províncias do extremo sul de França, onde encontra um estranho Dr. M. Maillard que aí dirige um manicómio, aborda de forma parabólica e algo satírica, a teoria da cura em liberdade, o “sistema da doçura”, no qual os pacientes não são contrariados nas suas alucinações e fantasias, mas antes impulsionados a satisfazer os seus instintos, procurando “curá-los” pelo absurdo. Se alguém pensa ser um galo, pois que se alimente de milho e farináceos, e logo perderá a loucura. O sistema parece, no entanto, não funcionar muito bem, apesar da áurea ganha nos meios científicos, na explicação de Maillard, que leva o visitante a percorrer as instalações da instituição, onde aparecem estranhas personagens, que se reúnem num jantar pantagruélico. É nessa altura que o narrador percebe que, durante a vigência do “sistema da doçura”, os internados se tinham revoltado, encarcerado médicos e enfermeiros e tomado conta do castelo que agora administravam com “um grão de loucura”.
Este conto está na base de um filme mexicano muito curioso, datado de 1973, que se passa em França (como no original de Poe), mas que foi rodado no México, falado em inglês, dirigido por um mítico Juan López Moctezuma e que conheceu vários títulos: “The Mansion of Madness”, “Dr. Goudron's System”, “Dr. Tarr's Pit of Horrors”, “Dr. Tarr's Torture Dungeon”, “Edgar Allan Poe: Dr. Tarr's Torture Dungeon”, “House of Madness”, “La Mansión de la Locura” ou “The System of Dr. Tarr and Professor Feather”.
Juan López Moctezuma é herdeiro de uma tradição mexicana de filmes de terror, que teve na presença de Luís Buñuel neste país uma forte motivação para uma inspiração surrealista e anti clerical. Moctezuma foi colaborador de Alejandro Jodorowsky, conheceu Fernando Arrabal e pode dizer-se que fez parte de um grupo que nos anos 60-70 se intitulou “Panic”, onde militava ainda Roland Topor. O “Movimento Pânico” tinha como musa a deusa Pã e uma forte influência de Buñuel e dos surrealistas franceses, bem assim como do teatro da crueldade de Antonin Artaud. A proposta era anárquica, surreal, caótica, libertina, fantástica, grotesca, libertadora… Durou mais ou menos até 1973.
Compreende-se assim a aproximação de Juan López Moctezuma da obra de Poe, particularmente do conto em questão, onde se defendem teses libertárias em relação à psiquiatria e à loucura. Aliás, parece que o próprio Poe se inspirou nos trabalhos de Philippe Pinel (1745-1826), o pai da psiquiatria francesa, que iniciou sistemas de cura benigna, libertando os doentes das grilhetas e exigindo a sua separação dos presos de delito comum e das prostitutas, no manicómio de Salpêtrière. Também William Tuke, em Inglaterra, e Dorethea Dix, nos EUA, iniciaram, no fim do século XVIII, princípios do XIX, idênticas lutas a favor de uma maior humanidade do tratamento das doenças mentais. Edgar Allan Poe mais não faz do que adaptar a conto as teorias que circulava no seu tempo. Juan López Moctezuma, por seu turno, fará o mesmo, adaptando esse conto ao cinema, ainda que com profundas alterações. Enquanto no conto, o manicómio é um espaço fechado, limpo e quase sofisticado, em Moctezuma os loucos fazem esperas a visitantes, vestidos de soldados e armados, evoluem livremente pela floresta circundante, e habitam um palácio em ruínas, completamente deteriorado e escalavrado (grande parte do filme foi rodado numa fábrica de têxteis há muito abandonada).
Em ambos os casos, porém, o que se condena é anarquia e o caos a que conduz uma liberdade mal entendida, moralidade que se ilustra através de certas situações de crítica satírica e de momentos de cruel paródia, dados de forma subtil. Aliás existe como que uma dualidade de olhar, ora crítico, ora complacente para com a loucura instala, o que poderá igualmente ter uma segunda leitura, fazendo equivaler, aos olhos do público, loucos e sãos de espíritos, sem que se saiba muito bem onde começam uns e acabam os outros. O que contem igualmente alguma crítica: muitas vezes são os loucos que ocupam os lugares dos ditos sãos de mentes, sem que nada aparentemente o faça notar.
Primeira experiência cinematográfica de Juan López Moctezuma, “The Mansion of Madness” não é uma obra-prima, mas mostra-se uma surpresa muito curiosa e um filme de indiscutível interesse, quer como aproximação de um tema querido do fantástico, quer como estilo de narrativa, que oscila entre o terror gótico e o humor de uns Monty Python, o exacerbamento visual de um Federico Fellini ou de um “Marat-Sade”, de Peter Brook. Há uma tendência para uma representação teatral que faz lembrar processos do “The Livig Theatre” e, simultaneamente, uma enorme cinefilia que não hesita em repescar réplicas de vários clássicos.
O filme é plasticamente muito curioso, acompanhando-se com prazer, muito embora não seja uma produção de orçamento elevado. Mas o bom gosto de cenários e guarda-roupa e a intencionalidade da narrativa remetem esta obra para o nível dos filmes não muito conhecidos do grande público, mas que merecem seguramente figurar na lista “de culto” de muitos aficionados do fantástico. Poe deveria gostar desta obra e sentir com ela alguma cumplicidade.
Anos depois, o checo Jan Svankmajer, partindo deste mesmo conto de Edgar Alan Poe (e também de “O Sepultado Vivo”) dirige “Lunacy”, “um filme de terror filosófico”, nas palavras do seu autor. “Uma fantasia transgressora que combina imagem real e animação. Nesta delirante alegoria à sociedade contemporânea encontramos o jovem Jean Berlot, um rapaz assombrado por terríveis pesadelos. Berlot trava conhecimento com Marquiz (inspirado no divino Marquês de Sade), um aristocrata com um glorioso apetite por blasfémias e orgias, e inicia uma odisseia “terapêutica”. Como temas centrais a liberdade, a manipulação e a repressão exercidas pela civilização.” O filme passou numa das edições do Indie Lisboa, de onde se retiram os dados.

Sem comentários: