David W. Griffith era um admirador incondicional de Edgar Allan Poe e dedicou-lhe várias obras. Uma, datada de 1909, com o título “Edgar Allen Poe” (sic), é um curioso esboço biográfico, composto por seis planos, com um total de pouco mais de sete minutos. Primeiro (falso) plano (são dois planos, unidos por uma trucagem): num quarto, uma cama onde repousa uma rapariga visivelmente doente, virada para uma longa janela que recebe a luz do dia. Entra Edgar Allan Poe que se preocupa com o estado da jovem mulher. A um canto, uma pequena mesa, sobre a qual, numa prateleira, repousa um busto. Súbito (trucagem, logo um falso plano único), surge nessa mesma prateleira, um corvo negro. Poe olha-o, surpreso, sente-se que a inspiração o invade, escrevinha algo numa folha de papel que vai mostrando, entusiasticamente, repetidas vezes à mulher. Terceiro plano: redacção de um jornal, onde se encontram dois jornalistas, trabalhando. Entra Poe, mostra o seu trabalho (obviamente o poema “The Raven”) a um que o rejeita, depois ao outro, que o afasta igualmente. Quarto plano: numa redacção de um outro jornal, uma mesa, um homem, com o letreiro “Editor” sobre a mesa, conversando com uma mulher. Entra Poe, mostra o poema à mulher que o recusa rapidamente, depois de ler algumas frases, mas o editor chama Poe, lê agradado o poema e paga a Poe por ele, que parte encantado com o dinheiro na mão. Quinto plano: de novo o quarto com a jovem doente, mas desta feita com um enquadramento mais fechado (sem se ver a prateleira): a mulher sofre, soergue-se, e desfalece. Entra Poe com mantimentos, um cobertor e um ar triunfante. Sexto plano (o enquadramento anterior, do primeiro plano, vendo-se a prateleira): Poe começa a agasalhar a jovem, mas, ao pegar-lhe no braço, compreende que chegou tarde e o corpo não passa de um cadáver. Desespero de Poe. Fim.
O filme é nitidamente uma ficção sobre um aspecto da vida de EAP, tentando explicar a génese de um poema, e estabelecendo uma relação dramática entre a criação literária e a vida quotidiana. Um filme dos primórdios do cinema que mostra como EAP era já mitificado como escritor romântico e maldito no início do século XX.
Dois anos depois, Griffith volta a Poe, em “The Two Paths”, onde se sente uma forte influência da Bíblia e de Edgar Allan Poe. Não é dos filmes mais significativos deste período de Griffith (que rodava por ano dezenas e dezenas de pequenos filmes de duas bobines). Trata-se de um melodrama sobre duas irmãs que tomam diferentes direcções nas suas vidas. Uma, Florence, mais irreverente e ambiciosa (Dorothy Bernard), vai para a cidade e torna-se amante de um milionário. A outra, Nellie, mais calma (Linda Arvidson), fica na casa do campo e casa-se por amor. Um belo trabalho de Griffith que imagina diversas cenas particularmente interessantes de um ponto de vista de narrativa audiovisual, e de significação imagética, sendo de realçar ainda a interpretação, onde figuram Donald Crisp, Lottie Pickford, Blanche Sweet, Charles West, Dorthy West e Wildred Lucas em pequenas aparições.
CONSCIÊNCIA VINGADORA
O outro filme em que David W. Griffith se aproximou do universo de Edgar Allan Poe, foi “The Avenging Conscience”, rodado em 1914, e que mescla poemas e ficção, sendo que a base são “Annabel Lee” e “The Tall-Tale Heart”, com algumas citações de “The Pit and the Pendulum”, “The Black Cat” e “The Conqueror Worm”.
Uma das personagens chama-se Annabela (Blanche Sweet) e está apaixonada por um jovem, que vive com um tio zarolho. O jovem lê poesia de Edgar Allan Poe (precisamente “Annabela Lee”) e apresenta ao tio a sua apaixonada. Mas este trata-a de forma grosseira, chamando-lhe “uma mulher vulgar”, e expulsando-a de casa. O órfão (Henry B. Walthall) não aceita de bom grado o comportamento tirânico do tio (Spottiswoode Aitken), e imagina a vingança, no que é auxiliado por algumas situações que observa no seu jardim, uma aranha envolvendo uma mosca no seu letal abraço ou uma multidão de formigas imobilizando e matando um insecto. Imagina então o assassinato do tio. Mas o crime é visto através da vidraça por um brutamontes de origem italiana (George Siegmann) que inicia logo ali a chantagem. O filme prolonga-se então como um melodrama muito ao estilo de Griffith, com uma ou outra incursão pelo fantástico e o místico (aparições de sobreposições da imagem de Cristo), terminando com uma alusão ao deus Pan, e um “happy end” escusado. Mas trata-se de uma obra invulgar (não esquecer que é uma realização de 1914, com cerca de 80 minutos, antecipando a obra-prima do ano seguinte, “O Nascimento de Uma Nação”), com uma construção dramática em muitos momentos admirável, o recurso a notas de observação inusitadas (planos de cães, gatos, um sapato tocando a porta de casa, tudo anotações de uma elegância e subtileza sem par na época), enquadramentos brilhantes, encadeados de imagens que relembram obras vanguardistas (muitas delas muito posteriores), e um extraordinário efeito sonoro sugerido pela imagem (num filme mudo), quando o detective bate com um lápis numa mesa, ao lado de um relógio de parede, o que leva o jovem órfão a “ouvir” o coração do tio e a confessar o seu crime.
O CORAÇÃO REVELADOR (1941)
“The Tell-Tale Heart” é um conto de Edgar Allan Poe que serviu de base a numerosas adaptações ao cinema. Uma que conhecemos e que nos parece dos melhores trabalhos cinematográficos saídos de temas poeanos é a versão de 1941, assinada por Jules Dassin, que com esta curta-metragem iniciava s sua carreira de realizador.
Interpretada com brio por Joseph Schildkraut e Roman Bohnen, “The Tell-Tale Heart” mantém-se muito próxima da obra literária, ainda que transpondo com felicidade os valores literários para valores de imagem (e som, diga-se de passagem, aqui essenciais). Um jovem homem vive amedrontado pela prepotência do seu velho amo, zarolho, que o trata mal, o esbofeteia, que o amesquinha como se ele fosse uma criança. O jovem trabalha num tear, cuida da casa, e sente a revolta crescer dentro de si. Um dia ameaça o velho com a fuga, mas este desdenha. Nessa noite, sobe ao quarto do despótico patrão, e mata-o, enterrando o corpo por baixo do soalho da casa. Mas a partir dai começa a ouvir o coração do velho a bater, como que exigindo vingança. Um coração que se tornará “revelador” para algumas visitas.
A fotografia é de um excelente preto e branco, a iluminação torna-se um aspecto essencial no filme, jogando importante papel no acentuar de sombras que se agigantam, na forma como é utilizada uma lanterna para criar focos de luz, nomeadamente na cena do assassinato, a realização é cuidada, alternando criteriosamente a grandeza dos enquadramentos, utilizando sabiamente certos processos simbólicos de narrar algumas cenas (o assassinato: o velho arrasta violentamente com uma mão uma pequena tapeçaria que tem por cima da cama, e que lhe cobre o rosto, quando morto, regressando à parede – e à normalidade reposta - depois do crime escondido), optando por uma expressividade sonora muito coerente com o projecto. Desde início que se chama a atenção do espectador para a acuidade do ouvido do jovem, que pressente a chegada do velho através dos seus passos, o que voltará depois a acontecer após o crime, quando o gotejar de uma bica de água ou o tiquetaque de um relógio se agigantam e se transformam no latejar de um coração que, apesar de morto, continua a trabalhar. Mas o som é talvez o elemento central desta pequena obra, sobretudo quando a voz off do velho ensombra a casa e a consciência humilhada do criado.
Trata-se de um belíssimo trabalho, cerca de vinte minutos que prenunciavam uma bela carreira a Jules Dassin. O que veio a acontecer.
Nota: Esta curta-metragem aparece inscrita no DVD “A Sombra do Homem Sombra”, da série “O Homem Sombra”, Ed. Warner em Portugal.
Nota: apareceu incluído como extra na edição de DVD de “Hellboy”. Pode ser visto no You Tube no seguinte endereço:
http://br.youtube.com/watch?v=W4s9V8aQu4c&eurl=http://laboratorio-de-realizacao-audiovisual.blogspot.com/2008/05/tell-tale-hear.html
ALONE
From childhood's hour I have not been / As others were; I have not seen / As others saw; I could not bring / My passions from a common spring. / From the same source I have not taken / My sorrow; I could not awaken / My heart to joy at the same tone; / And all I loved, I loved alone. / Then- in my childhood, in the dawn / Of a most stormy life- was drawn / From every depth of good and ill / The mystery which binds me still: / From the torrent, or the fountain, / From the red cliff of the mountain, / From the sun that round me rolled / In its autumn tint of gold, / From the lightning in the sky / As it passed me flying by, / From the thunder and the storm, / And the cloud that took the form / (When the rest of Heaven was blue) / Of a demon in my view.
Edgar Allan Poe
Este poema aparece publicado no “Scribner’s Monthly Magazine”, de Setembro de 1875, mas o manuscrito deveria datar de 1829, mais coisa menos coisa, segundo os estudiosos da obra de Poe, que detectam nele fortes influências de Lord Byron. O poema nunca foi titulado por Edgar Allan Poe, e a designação “Alone” é atribuída aos editores da sua obra póstuma. É com base neste poema que os argumentistas Paul Hart-Wilden, David Ball, Philip Claydon, John P. Davies e Mark Laughman e o realizador Philip Claydon constroem o esquema de “Alone”, filme de 2001, que assinala a estreia na realização deste cineasta inglês (que se prepara para lançar em Londres “Lesbian Vampires Killers”).
Filme de terror ambientado na actualidade, “Alone” não será uma surpresa, mas é uma obra que se acompanha com atenção e sem esforço. Vivendo, em certas sequências, de uma montagem rápida, e de um encadeado de imagens que relembram os filmes de vanguarda, com planos muito fechados, câmara desequilibrada, solarizações e uma utilização violenta das cores, cenários estranhos e enquadramentos invulgares, “Alone” assemelha-se em muito a episódios de séries televisivas de temática policial, com uma dupla de detectives, ele mais velho, ela mais nova, que investigam o caso de uma mulher que aparece morta, depois de ter descido aos repelões pelas escadas abaixo da sua casa. Todos se parecem inclinar para acidente ou suicídio, mas o crime transparece nalguns aspectos. O que se torna mais óbvio quando aparecem outros casos, não semelhantes, mas que podem ter relação entre si.
Enquanto a polícia investiga por um lado, nós, espectadores, temos a visão da criminosa (não a visão do seu corpo, mas temos literalmente a visão do que ela vai vendo, através de câmara subjectiva), e vamos acompanhando os seus pensamentos, as suas obsessões, os seus fantasmas. E compreendemos as causas que a levam a matar “sem querer” (“O pior criminoso é aquele que não tem a noção do mal que faz”, diz a certa altura o detective), que a impelem a procurar alguém a quem ofertar o seu amor, das formas mais trágicas. Alex, que quase desde início sabemos ser a criminosa, teve uma infância infeliz, os pais morreram quando ela era adolescente, e a partir daí vive obcecada por vozes e por uma solidão irremediável que a atormenta. Procura amores, cumplicidades. Em mulheres de todos os géneros. Da prostituta de cabaret à secretaria de uma psiquiatra.
O filme é, pois, uma obra interessante, com muito pouco a ver com Poe, mas um forte dose de pretensões narrativas, ainda assim denotando qualidades que poderão, ou não, ser confirmadas num futuro próximo. Mantendo-se no campo do lesbianismo, aí teremos brevemente “Lesbian Vampires Killers” para tirar teimas.