segunda-feira, 26 de maio de 2008

NOTAS SOBRE EDGAR ALLAN POE NO CINEMA III


ROGER CORMAN E O "CICLO POE" NA REVISTA FILME (1963)

A recuperação deste texto meu, datado de 1963, e aparecido na revista “Filme”, dirigida por Luís de Pina, é uma curiosidade que não deixa de suscitar nostalgia e um irónico sorriso. Creio que foi o meu primeiro trabalho para essa revista, e motivou um dos primeiros encontros com Luís de Pina, de quem tive o privilégio de vir a ser amigo, até à sua morte permatura. Depois, nesse ano, muito poucos davam atenção a obras estreadas em cinemas populares como o Olympia, onde se lançaram em Portugal quase todos os filmes de Roger Corman. Na altura eram salas “inferiores”, onde raramente se estreavam obras de certa “dignidade” cinematográfica. Foi lá que descobri Roger Corman, foi nessa altura que o defendi com unhas e dentes, este um dos textos onde isso aconteceu. Mais tarde, tudo mudou e Corman tornou-se um “must” da “inteligência” internacional (logo da “inteligência” nacional). Ultimamente até com passagem na elitista Cinemateca Portuguesa. Mas no catálogo do Ciclo dedicado a Roger Corman não aparece uma única referência a estes textos, escritos por um crítico de 21 anos. Mas surgem muitas transcrições de textos estrangeiros, todos eles referentes a publicações posteriores a 1985. Curioso.
A recente exibição entre nós, com o curto intervalo de dois meses, de várias películas de Roger Corman – “A Queda da Caso Usher” (“The Fall of House of Usher”), “O Fosso e o Pêndulo” (“The Pit and the Pendulum”), A Maldita, o Gato e a Morte” (“Tales of Terror”) e “Armas em Fúria” (“The Gunlinger») (1), chamou a atenção do público e da crítica lisboeta para este jovem realizador que produziu já cerca de sessenta películas, tendo realizado, dentre estas, quarenta e tantas.
Roger Corman (2) nasceu em Michigan (Detroit), a 5 de Abril de 1926. Fez os estudos primários na Califórnia e frequentou a Universidade de Standford. Durante a 2ª Grande Guerra, encontramo-lo num curso preparatório para oficiais da Marinha, donde sai bacharelado em ciências marítimas. Quando a guerra terminou, Corman trabalhou como engenheiro, “durante quatro dias” (como ele próprio afirma), findos os quais se emprega na Twentieth Century Fox.
Tendo passado por quase todos os lugres que conduzem à criação cinematográfica, propriamente dita, Corman tornou-se, rapidamente, um “story analyst”, altura em que partiu para Inglaterra, a fim de apresentar uma tese na Universidade de Oxford, sobre literatura inglesa. Antes de regressar à América, viajou pela Europa, tendo-se fixado algum tempo em Paris. De volta à Califórnia dispersou colaboração literária por diversos revistas e escreveu alguns argumentos que mereceram a adaptação ao cinema.
Finalmente, em 1954, produziu um filme sobre um “script” seu (“Monster from the Ocean Floor”) e nesse mesmo ano funda uma nova empresa produtora de filmes (a American-lnternational-Píctures) cuja primeira película foi “The Fast and the Furious”, com Dorothy Malone e John Ireland.
No ano seguinte (1955) realiza o seu primeiro filme (“Five Guns West”), um “western” que teve muito bom acolhimento e lhe abriu as portas a uma carreira fecunda e promissora.
Quase nunca a abundância reflecte qualidade ou, pelo menos, honestidade de processos e de fins. Poderá, portanto, começar por pensar-se que Roger Corman, realizando uma média de sete ou oito filmes anuais (quarenta e cinco, em sete anos), alcançando mesmo os dez, nalguns anos, é o género de realizador puramente comercial, sem pretensões de qualquer espécie, a não ser as sempre deploráveis intenções de mistificar, agradando ao público, servindo-o nos seus instintos mais primários. Ora tal não parece ter sido nunca o caso de Roger Corman, de quem conhecemos apenas três das obras atrás mencionadas, mas de quem colhemos excelentes referências de probidade profissional e cujas duas últimos obras conhecidas – “Young Racers” e “The Intruder” - reflectem preocupações de ordem social, bem definidas.
O caminho percorrido por este jovem - o inverso do de um Martin Ritt, de um Sidney Lumet ou de um Delbert Mann, que começaram as suas carreiras com obras que se recusavam moldar ao esquema comercial da máquina de Hollywood - parece igualmente assegurar um interessante futuro onde serão possíveis películas de grande qualidade.
É interessante referir o tipo de produção que Corman adoptou e que revela, apesar de ser genuinamente americano, uma certa originalidade de processos. Para conseguir um ritmo de produção que lhe permitisse alcançar a médio de sete a oito filmes por ano, Corman rodeou-se de uma equipa de colaboradores, que tem mantido, o mais que lhe é possível, de película em película, desde 1960.
Deste grupo homogéneo e seguro fazem parte o operador Floyd Crosby, o director artístico Daniel Haller, o escritor Richard Matheson (que, como veremos, foi o homem da ideia de um ciclo de adaptações cinematográficas de obras do grande escritor norte-americano Edgar Allan Poe), o músico Ronald Stein, o primeiro actor Vincent Price e mais alguns actores secundários. Uma equipa assim estruturada possibilita a realização duma película, num tempo de rodagem mínima e com um orçamento reduzido, em comparação com o que é normal e usual entre as empresas norte-americanas.
Assim, uma película para este jovem director demora, em regra, quinze dias em filmagens (Roger Corman conta que terminou uma das suas histórias em dois dias e uma noite!} e a orçamento nunca ultrapasso os 750.000 dólares, tendo até conseguido dirigir alguns com a importância de 15.000 dólares. No respeitante ao elenco, Corman chama, somente, para cada uma das suas obras, um actor de nomeada, a quem entrega o papel mais espinhoso (Boris Karloff, Peter Lorre, Ray Milland, Dorothy Malone ou Vincent Príce), trabalhando, nos restantes personagens, com actores desconhecidos.
A maioria das suas obras são de uma grande honestidade e as suas pretensões nunca vão além do que lhes é lícito pedir. Na sua filmografia encontramos filmes de “cow-boys”, musicais (de “rock-and-roll”), de ficção-cientifica, biografias de gangsters, reconstituições históricas, fantasias interplanetárias, filmes de terror, adaptastes shakespearianas e, por último, obras de pretensões sociais (como a luta anti-racista e anti-fascista em “The Intruder”). Em todos estes géneros, segundo o testemunho de críticos conhecedores de grande parte da sua filmografia, revela-se Corman um director que sabe enquadrar e se integra bem em qualquer espécie de conflito e dele extrair as necessárias ilações, que tornam as obras curiosas e interessantes.
Autor extraordinariamente fecundo, Roger Corman, ao falar dos seus filmes, afirmou: “Os filmes de pequeno orçamento que fiz no passado foram para mim uma excelente ocasião de aprender o meu ofício e creio que divertiram muita gente.”
Noutra passagem, Corman diz: “Verdadeiramente não me lembro de todos os meus filmes, mas entre os mais importantes que produzi e realizei, posso citar, por ordem: “Five guns west”, “Apache Women”, “The day the word ended”, “Swamp women”, “Thunder over Hawaii”, “Rock all night”, “The undead”, “The gunshinger”, “Not of this earth”, “Machine gun Kelly”, “l mohster”, “Bucket of blood”, “War of the satellite”, “The wasp woman”, “Ski troop attack”, “The lost woman on earth”, “Little shop of horrors”, “The fall of the house Usher”, “The pit and the pendulum”, “The primature burial”, “The intruder”, “Tales of terror”, “The young racers”, “The Terror” e “The Raven”.
Roger Corman tornou-se conhecido e admirado sobretudo a partir de 1960, altura em que, como vimos, resolveu adaptar ao cinema um ciclo de obras de Edgar Allan Poe. Entregando o trabalho da adaptação ao argumentista Richard Matheson, que Iho havia sugerido, Corman rodou em três anos, cinco películas baseavas em histórias desse escritor (em 1960, “A Queda da Casa Usher”; em 1961, “O Fosso e o Pêndulo”, “The prematura burial”, “A Maldita, o Gato e o Morte” e 1962, “The Raven”.
Na realização destas obras, importantíssimas numa futura história do fantástico no cinema, Corman conseguiu uma reconstituição felicíssima da ambiência fantasmagórica, característica de Poe, desse “universo necrófilo”, perfeitamente captado das obras literárias, que conferem a estas películas um lugar destacado, no que poderemos chamar, a tradição aristocrática, de fundo literário, do filme de terror.
Galeria de monstros psicológicos, de heróis dementes, de homens atacados pela loucura, de seres em cujo inconsciente se revelam os mais completas e profundas obsessões, eis o que se poderá generalizar, através duma visão rápida do ciclo dedicado a Poe. Convém aqui lembrar que Richard Matheson concebeu os argumentos mediante o estudo de Marie Bonaparte (discípula de Freud) das obras completos do desditoso escritor norte-americano. Assim compreenderemos melhor e mais facilmente aceitaremos este universo poético, é certo, mas psicologicamente doentio, patológico, atormentado pelos mais variados casos de demência, que vão desde a alucinação, ao sonambulismo, ao estado cataléptico, à hipersensibilidade, passando pelas heranças hereditárias, pela obsessão ou pelos espíritos visionários, onde o espectro da morte balança, constantemente, frente aos olhos aterrados das suas vítimas, em quem parece pesar um destino inalterável.
Em “A Queda da Casa Usher” encontramos Roderick Usher que, por herança familiar, é hipersensível, atormentado com um som mais agudo, numa luz mais forte, um odor mais penetrante. Esses sentidos haviam causado já a perdição dos seus ascendentes que degeneraram em loucos assassinos. A sombra da fatalidade, fazendo-se sentir ao longo de toda a película, predispunha os espectadores a aceitarem como única a destruição daquela casa, no interior da qual, em ambientes de requintado bom gosto, evoluíam os personagens.
É, igualmente, um caso de hereditariedade o narrado em “O Fosso e o Pêndulo” (cuja sequência final, no fosso, é digna de uma antologia do simbolismo em cinema). Aqui, o protagonista é Nicholas Medino, que em criança vê o pai matar o tio e emparedar viva a mulher, que o atraiçoara, depois de a haver flagelado, selvaticamente. Esta visão gravou-se no espírito de Nicholas que, auto-sugestionando-se, pensa igualmente ter emparedado viva a mulher. Como por fatalidade as previsões confirmam-se e acaba por se repetir a história.
Em “A Maldita, o Gato e a Morte” é a morte o elemento de ligação entre os três contos que constituem o filme. Se bem que não respeitando totalmente as intrigas engendrados pela prodigiosa imaginação de Poe, Corman capta, de modo feliz, este ambiente doentio, mórbido e fatalista do genial poeta. As três histórias são “Morella” (um caso de vingança, tendo por base a transmudação dos espíritos; “O Gato Preto” (onde Corman se compraz na descrição do emparedamento dum casal, levado o cabo por um marido atraiçoado e da sua consequente descoberta, tudo isto envolvido em momentos de espirituoso sadismo) e “O Estranho Caso do dr. Valdemar” (um problema de hipnotismo “in articulo mortis”). Dentre todas estas narrativas fantásticos, preferimos, sem dúvida “O Gato Preto” que é, estrutural e esteticamente, o melhor pedaço de cinema deste filme. “Morella”, aparte uns pequenos e dispersos apontamentos de bom efeito, não logra alcançar o nível a que Corman nos habituou já, o mesmo se podendo dizer de “O Estranho Caso do dr. Valdemar”, por demais estético para subjugar o espectador.
O mérito de Roger Corman, ao filmar as películas consagradas ao ciclo Põe, consiste na perfeita identificação conseguida com o universo do escritor, quer na ambiência escolhida (exteriores, decoração de interiores, guarda-roupa, etc.), quer na utilização frequente duma simbologia em que Poe se revelou um antecessor de Freud e da psicanálise, quer na composição de “flash–backs” ou na construção de sonhos (filmados por intermédio de lentes de uma só cor), quer ainda na escolha dos intérpretes, donde sobressai, de forma brilhante, o trabalho de Vincent Price, actor de extraordinários recursos histriónicos e vocais que conseguiu, tanto em “O Fosso e o Pêndulo” (onde, em sucessivas gradações, se vai observando a sua lenta evolução para a loucura), como em “A Queda da Casa Usher”, criações duma perfeita concepção. Neste particular, “A Maldita, o Gato e a Morte” é um filme decisivo: Vincent Price interpreta nele três figuras diferentes e em qualquer delas o seu trabalho é magnífico. Em “O Gato Preto”, encarnando num conhecido e enfático provador de vinhos, contracenando com esse, “arranca” um desempenho notável. Como afirmou Robert Benayoun, Roger Cormon, “nesta série incomparável, rende o mais bela homenagem do cinema o Edgar Poe.”
“The Intruder” foi exibido, no ano passado, no Festival Internacional de Veneza, alcançando uma inegável corrente de simpatia por parte da crítica presente. Como esta obra nos não visitou ainda, vejamos o que dela disseram:
Roger Corman: “De todos os meus filmes o que prefiro é “The Intruder”. Quando o fiz estava para financiar qualquer filme de pequeno orçamento, mas incapaz de obter um financiamento qualquer para um filme mais caro ou um assunto mais sério. Comprei os direitos do romance por duas razões: primeiramente, acreditava no tema e estava seguro de poder extrair dele um bom filme, e em segundo lugar, estava um pouco fatigado com o género de filmes que rodava e queria ensaiar qualquer coisa de fundamentalmente diferente. Quando preparava o argumento apercebi-me com surpresa que ninguém me queria financiar o filme. Todos os grandes estúdios de Hollywood me desencorajaram e finalmente decidi jogar todas as minhas economias, que me vinham dos filmes de pequeno orçamento, e adiantar eu próprio os créditos.”
“O filme foi inteiramente rodado em exteriores no Sul e em três semanas, com todos os papéis (excepto os protagonistas) interpretados por pessoas da região. Até agora os críticos americanos têm-no elogiado bastante e espero que ele anunciará para mim uma série de filmes mais significativos”.
Roberto Benayoun (crítico de “Positiv”): “The Intruder” continua fiel à linha geral do seu autor. Corman descreve o fanático Adam Cramer, vindo para sabotar a integração numa pequena cidade do Sul, como um revolucionário, um visitante de um outro mundo. Cramer, de físico sedutor, apresenta-se a todos de uma gentileza extrema, com o frase-chave: “Vamos ser amigos, não é verdade?” Depois, com o nome de Patrick Henry Society, começa a semear a dúvida nos espírito, sobe a uma tribuna e lança mensagens inflamadas, onde sugere a invasão da Américo, pelos judeus e pelos comunistas: “Quereis dirigentes negros como em Chicago? Quereis que sejam médicos negros a trazerem os vossos filhos ao mundo?” Por fim, assegura a colaboração dos elementos turbulentos da cidade, blusões negros, políticos desonestos e linchadores em potencia, constrói com todas os peças um véu de licenciosidade que poderia lançar fogo à pólvora.”
“Mas como todos os heróis de Corman, Cramer tem lacunas características que o perderão. Pueril e galanteador, brinca com o revólver diante do espelho e ensaia os seus dotes juvenis de sedução nas mulheres alheias. É um marido enganado, inimigo subestimado, que o desmascarará finalmente e voltará contra ele a cidade revoltada.”
«Corman reuniu aqui um testemunho incisivo, um retrato inquietante sobre um aspecto contemporâneo do fascismo U. S. A. e sem qualquer apaziguamento específico ao género, nem atenuando a realidade. Seria muito fácil proclamar que Corman se entrega por fim a um assunto sério. “The Intruder” para mim não fez senão confirmar o génio dum realizador cujo obra, rica e diversa, sobe o declive.”
Júlio C. Acerete (crítico de “Nuestro Cine”): “Sem dúvida, “The Intruder” não chega aonde seria necessário, o que não impede que o filme tenha sofrido pressões para a sua distribuição nos Estados Unidos. De qualquer modo, fica claro que a prolixidade criadora de Corman não significa vulgaridade, já que os seus filmes possuem um certo interesse. Mas, como acontece com muitos realizadores, pode ser que Corman tenha mais importância em filmes como os pertencentes ao seu ciclo dedicado a Poe que em obras aparentemente mais importantes, como este “The Intruder”.
LAURO ANTÓNIO, in Revista “Filme” (1963)
(1) - Da lista de programoção da Sif para 1963-64, consta ainda uma película de Roger Corman, “The Prematore Bureal”, com o título, “Enterrado Vivo”, pelo que é natural que o vejamos brevemente.
(2) - Sobre Roger Corman, chamo a atenção dos leitores para o excelente estudo de Robert Benayoun, publicado no n.º 50-51-52, da revista “Positif”, e ainda para o artigo “Presentacón de Roger Corman”, de Júlio C. Acerete, vindo a público no n-° 20 de “Nuestro Cine”.

3 comentários:

Ana Paula Sena disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Onde esta o comentário da Maristela Szymanski Hundsdorfer?

Lauro António disse...

Sim, onde está esse comentário? e quem é Maristela Szymanski Hundsdorfer?