
“A Queda da Casa Usher”, que Edgar Allan Poe escreveu em 1839, é um dos seus trabalhos mais conhecidos e mais adaptados não só ao cinema como a outras formas de expressão e de narrativa. No cinema são inúmeras as versões conhecidas, a começar logo perla década de 20, onde surgem duas adaptações vanguardistas, uma americana, de 1926-28, da dupla James Sibley Watson e Melville Webber, outra francesa, de um dos nomes grandes da vanguarda dessa época, Jean Epstein. A primeira é uma curiosa experiência de recorte nitidamente expressionista, filmada em Rocheter, Nova Iorque, com uma forte influência de poetas e artistas plásticos, expressa aliás na colaboração de Melville Webber, que assegurou o lado plástico, procurando recuperar certos aspectos dos frescos medievais, e de James Sibley Watson, que se interessou mais pelos efeitos visuais em que o pequeno filme (13 minutos) é pródigo e que logram efeitos muito sugestivos. 

“A Queda da Casa de Usher” (La Chute de la Maison Usher), de 1928, França, tem argumento de Jean Epstein e Luis Buñuel (que foi ainda assistente de realização) e interpretação de Jean Debucourt (Sir Roderick Usher), Marguerite Gance (Madeleine Usher), Charles Lamy (Allan), Fournez-Goffard (médico), Luc Dartagnan, Abel Gance, Halma, Pierre Hot, Pierre Kefer, etc. São 63 minutos do melhor que Poe inspirou ao cinema, uma verdadeira obra-prima do fantástico e do onírico, logrando criar Jean Epstein uma atmosfera poética admirável, através da fabulosa utilização da imagem, dos enquadramentos, dos movimentos, do jogo de combinação de grandeza de planos, da iluminação, da própria “encenação” dos espaços.
Por uma terra de ninguém ventosa e lúgubre, solitária e inóspita, avança um homem carregando duas malas. Entra numa estalagem e pede para alguém o conduzir a casa dos Usher. Olham-no surpresos e com estranheza. Percebe-se a razão que leva o desconhecido até ali: uma carta de Roderick Usher convida Allan, um velho amigo, a visitá-lo, adiantando que está doente e a mulher também. Um saco de moedas na mão de Allan e o aparecimento de alguém numa carroça provoca o efeito desejado. Chegado ao palácio, e depois das boas vindas, o jantar onde Roderick e Allan recuperam memórias. Mas Roderick está impaciente. Quer continuar a trabalhar no retrato da mulher, Madeleine (subtil desvio do conto de Poe, Madeleine passa de irmã a mulher). Por isso, Allan é enviado para uma passeata pelo campo, enquanto Roderick (magnificamente interpretado por Jean Debucourt, num tipo de composição extremamente conseguida, em vigor e subtileza, uma mistura invulgar que surpreende e fascina) volta ao quadro e à mulher que posa, ameaçada pelo olhar do marido que a consome, a domina, a submete. Há uma cena brilhante que confere todas essas sensações: grande plano do rosto de Roderick, o seu olhar obsessivo; plano de Madeleine, posando, inscrita num cenário soturno, implorando tréguas com o olhar; pormenor das mãos de Roderick apertando-se; plano da paleta, do pincel escolhendo as cores e as tintas.
Madeleine é o modelo, a inspiração; Roderick pinta-a, olha-a, suga-lhe a vida com o olhar. Cada nova pincelada no quadro reflecte-se no rosto de Madeleine, que se sente atingida, macerada. Roderick pinta à luz de velas que se consomem. A imagem desta sequência restitui a tortura, o martírio, a posse, a violação. Súbito a câmara afasta-se e descobre-se a grandeza do cenário, um salão enorme, onde Roderick dá pasto à sua obsessão. Olha a mulher, olha a paleta, olha o quadro. Está obviamente muito mais interessado no quadro do que no modelo. Dirá mais tarde: “O quadro é a verdadeira vida”. A mulher jaz no chão, desfalecida. Ele continua a pintar sem dar por nada. Madeleine morre. Roderick transporta-a então nos braços, horrorizado. Allan, lendo um livro comenta: “Roderick estava possuído pela teoria do magnetismo.” (algo que interessava muito Edgar Allan Poe).
Segue-se toda a sequência da preparação do enterro, as dúvidas (“Ela não está talvez morta!?”), Roderick quer impedir o enterro, o quadro toma definitivamente o lugar da mulher morta (“Ela não nos abandonará!”), o pintor olha-o, extasiado, enquanto o caixão é fechado, perante o horror de Roderick. Sequência que relembra em muitos aspectos planos de “Nosferatu”, de Murnau. O enterro inicia-se, passam por áleas de jardins, por entre o nevoeiro, vogam ao sabor das águas de um rio, o véu branco desta fúnebre noiva deslizando nas águas, erguendo-se no ar, preso da barcaça. Descem à cripta, uma boca aberta iluminada do exterior, projectando luz. O caixão é fechado, pregado finalmente, o martelo do horror descendo sobre o prego, iluminados por velas. Ratos que fogem pelos cantos, um sapo.
Depois do enterro, o silêncio que tudo envolve. A monotonia. A natureza-morta. Rio, serra, palacete, ninguém. Um gato. Roderick olha escadas e corredores desertos, os cortinados esvoaçando. O mínimo ruído exaspera-o. A guitarra abandonada. As mãos cruzadas. Sonho, pesadelo, imagens deformadas, sobreposições, grandes planos de rostos, pormenores ameaçadores. As cordas da guitarra que se soltam, sozinhas, “Roderick não volta a proferir o nome de Madeleine”. Parece paralisado pela dor. Um relógio. Um pêndulo que se assemelha muito ao pêndulo de “The Pit and the Pendulum”. O tempo que passa. A tempestade que avança. Allan lê num livro uma passagem sobre uma sepultada viva. Enquanto isso, na cripta, o caixão de Madeleine tomba da prateleira onde fora depositado. Roderick, no vasto salão, junto ao fogo que crepita na lareira, balouça os pés sentado numa cadeira. As velas pegam fogo aos cortinados com a ventania que se abate sobre o palácio, que começa também a desmoronar-se. As armaduras metálicas nos corredores desabam. Roderick olha fascinado a destruição. Será loucura, a deste olhar? Madeleine regressa, de branco, noiva, de véus ao vento, flutuando como um fantasma. “Sim, ouço-a, ouço-a desde o primeiro dia!”, grita Roderick. “Nós enterrámo-la viva!”. O fogo tudo cobre. Allan afasta-se para o exterior do palácio. Madeleine e Roderick abraçam-se, e é assim que tentam fugir das labaredas. Em vão. O quadro de Madeleine sossobra igualmente no inferno das chamas.
Nesta obra que interpreta da melhor forma o universo de Poe, inspirando-se em Dreyer (“O Vampiro”), e Murnau, em “O Retrato de Dorian Gray”, na literatura, Epstein cria um ambiente de cortar à faca, com uma enorme economia de meios, usando uma linguagem vanguardista que vai buscar muito aos expressionistas, mas também ao surrealismo e aos vanguardistas franceses dessa época. Um grande momento de cinema.
“The Fall of the House of Usher” regressa aos ecrãs, em 1949, com assinatura de Ivan Barnett, numa produção inglesa. Que desconhecemos.
Por uma terra de ninguém ventosa e lúgubre, solitária e inóspita, avança um homem carregando duas malas. Entra numa estalagem e pede para alguém o conduzir a casa dos Usher. Olham-no surpresos e com estranheza. Percebe-se a razão que leva o desconhecido até ali: uma carta de Roderick Usher convida Allan, um velho amigo, a visitá-lo, adiantando que está doente e a mulher também. Um saco de moedas na mão de Allan e o aparecimento de alguém numa carroça provoca o efeito desejado. Chegado ao palácio, e depois das boas vindas, o jantar onde Roderick e Allan recuperam memórias. Mas Roderick está impaciente. Quer continuar a trabalhar no retrato da mulher, Madeleine (subtil desvio do conto de Poe, Madeleine passa de irmã a mulher). Por isso, Allan é enviado para uma passeata pelo campo, enquanto Roderick (magnificamente interpretado por Jean Debucourt, num tipo de composição extremamente conseguida, em vigor e subtileza, uma mistura invulgar que surpreende e fascina) volta ao quadro e à mulher que posa, ameaçada pelo olhar do marido que a consome, a domina, a submete. Há uma cena brilhante que confere todas essas sensações: grande plano do rosto de Roderick, o seu olhar obsessivo; plano de Madeleine, posando, inscrita num cenário soturno, implorando tréguas com o olhar; pormenor das mãos de Roderick apertando-se; plano da paleta, do pincel escolhendo as cores e as tintas.
Madeleine é o modelo, a inspiração; Roderick pinta-a, olha-a, suga-lhe a vida com o olhar. Cada nova pincelada no quadro reflecte-se no rosto de Madeleine, que se sente atingida, macerada. Roderick pinta à luz de velas que se consomem. A imagem desta sequência restitui a tortura, o martírio, a posse, a violação. Súbito a câmara afasta-se e descobre-se a grandeza do cenário, um salão enorme, onde Roderick dá pasto à sua obsessão. Olha a mulher, olha a paleta, olha o quadro. Está obviamente muito mais interessado no quadro do que no modelo. Dirá mais tarde: “O quadro é a verdadeira vida”. A mulher jaz no chão, desfalecida. Ele continua a pintar sem dar por nada. Madeleine morre. Roderick transporta-a então nos braços, horrorizado. Allan, lendo um livro comenta: “Roderick estava possuído pela teoria do magnetismo.” (algo que interessava muito Edgar Allan Poe).
Segue-se toda a sequência da preparação do enterro, as dúvidas (“Ela não está talvez morta!?”), Roderick quer impedir o enterro, o quadro toma definitivamente o lugar da mulher morta (“Ela não nos abandonará!”), o pintor olha-o, extasiado, enquanto o caixão é fechado, perante o horror de Roderick. Sequência que relembra em muitos aspectos planos de “Nosferatu”, de Murnau. O enterro inicia-se, passam por áleas de jardins, por entre o nevoeiro, vogam ao sabor das águas de um rio, o véu branco desta fúnebre noiva deslizando nas águas, erguendo-se no ar, preso da barcaça. Descem à cripta, uma boca aberta iluminada do exterior, projectando luz. O caixão é fechado, pregado finalmente, o martelo do horror descendo sobre o prego, iluminados por velas. Ratos que fogem pelos cantos, um sapo.
Depois do enterro, o silêncio que tudo envolve. A monotonia. A natureza-morta. Rio, serra, palacete, ninguém. Um gato. Roderick olha escadas e corredores desertos, os cortinados esvoaçando. O mínimo ruído exaspera-o. A guitarra abandonada. As mãos cruzadas. Sonho, pesadelo, imagens deformadas, sobreposições, grandes planos de rostos, pormenores ameaçadores. As cordas da guitarra que se soltam, sozinhas, “Roderick não volta a proferir o nome de Madeleine”. Parece paralisado pela dor. Um relógio. Um pêndulo que se assemelha muito ao pêndulo de “The Pit and the Pendulum”. O tempo que passa. A tempestade que avança. Allan lê num livro uma passagem sobre uma sepultada viva. Enquanto isso, na cripta, o caixão de Madeleine tomba da prateleira onde fora depositado. Roderick, no vasto salão, junto ao fogo que crepita na lareira, balouça os pés sentado numa cadeira. As velas pegam fogo aos cortinados com a ventania que se abate sobre o palácio, que começa também a desmoronar-se. As armaduras metálicas nos corredores desabam. Roderick olha fascinado a destruição. Será loucura, a deste olhar? Madeleine regressa, de branco, noiva, de véus ao vento, flutuando como um fantasma. “Sim, ouço-a, ouço-a desde o primeiro dia!”, grita Roderick. “Nós enterrámo-la viva!”. O fogo tudo cobre. Allan afasta-se para o exterior do palácio. Madeleine e Roderick abraçam-se, e é assim que tentam fugir das labaredas. Em vão. O quadro de Madeleine sossobra igualmente no inferno das chamas.
Nesta obra que interpreta da melhor forma o universo de Poe, inspirando-se em Dreyer (“O Vampiro”), e Murnau, em “O Retrato de Dorian Gray”, na literatura, Epstein cria um ambiente de cortar à faca, com uma enorme economia de meios, usando uma linguagem vanguardista que vai buscar muito aos expressionistas, mas também ao surrealismo e aos vanguardistas franceses dessa época. Um grande momento de cinema.
“The Fall of the House of Usher” regressa aos ecrãs, em 1949, com assinatura de Ivan Barnett, numa produção inglesa. Que desconhecemos.

Mas a obra mais carismática de entre todas as retiradas deste conto de Poe terá sido “House of Usher”, de 1960, com a assinatura de Roger Corman, e argumento adaptado por Richard Matheson, um escritor do fantástico norte-americano de muito bom nível. Foi o início do ciclo dedicado por Roger Corman a Edgar Allan Poe. Com uma equipa que variou muito pouco, produção de Roger Corman e James H. Nicholson, música original de Les Baxter, fotografia, de excelente colorido com a assinatura de Floyd Crosby, montagem de Anthony Carras, direcção artística de Daniel Haller e um reduzido elenco onde sobressaia Vincent Price (Roderick Usher), bem acompanhado por Mark Damon (Philip Winthrop), Myrna Fahey (Madeline Usher) e Harry Ellerbe (Bristol).




A economia de meios é de tal forma que um filme destes é rodado em menos de duas semanas, outro se lhe segue de imediato, rodado com a mesma equipa, um elenco semelhante, os mesmos cenários, iguais adereços e guarda-roupa, de forma a que essa produção continua embarateça o orçamento, permitindo o talento de Corman que estas produções de série B sobrevivam como clássicos e filmes de culto que mantêm, quase cinquenta anos depois, toda a sua magia.

Sobre o mesmo tema, Jesus Franco (ou Jess Franco), em Espanha, no ano de 1982, recoloca as personagens em cena, numa interessante série B, que conheceu diversos títulos: “Revenge in the House of Usher” ou “La Chute de la Maison Usher” ou “Los Crímenes de Usher” ou “El Hundimiento de la Casa Usher” ou “Neurosis” ou “Nevrose” ou “Revolt of the House of Usher” ou “Zombie 5”. O veterano Jesus Franco (mais de 180 títulos na sua filmografia!) nunca foi cineasta para grandes subtilezas, mas o seu cinema, muito popular e por vezes excessivamente oportunista no namoro ao público (no sexo e no gore), conseguia ter alguma graça, numa demonstração de uma certa “inocência” cultural, apesar do realizador manifestar alguns conhecimentos sobre literatura e estética cinematográfica. Curiosamente, Jesus Franco considera esta sua versão de “A Queda da Casa Usher” uma das mais fiéis a Edgar Allan Poe e a sua obra mais pessoal e menos comercial, um verdadeiro “filme de autor”. O filme tem momentos fracos, mas ostenta algumas sequências bastante bem conseguidas num plano plástico, onde as influências do expressionismo são evidentes. Neste aspecto, todas as cenas a preto e branco, que remetem para flash backs, conseguem impressionar pela positiva, muito embora a interpretação dos actores não seja das mais convincentes. Mas globalmente é um filme interessante, que aproxima a Casa Usher de um covil de vampiros, para onde são raptadas mulheres de vida fácil, para abastecerem de sangue a muito debilitada filha de Usher (para lá de outras personagens com gostos afins). Há uma personagem que relembra o velho de “O Coração Revelador”. Há sequência que recordam outros filmes de Fraco (particularmente El Secreto del Dr. Orloff”). Curioso, tanto mais que DVD onde se disponibiliza esta pequena fita de terror contem uma curiosa entrevista com o cineasta espanhol, personagem particularmente singular no universo do cinema fantástico. Nada, porém, que se possa comparar com Roger Corman.

“The House of Usher” volta a interessar os estúdios norte-americanos, uma vez em 1988, com realização a cargo de Alan Birkinshaw, argumento de Michael J. Murray, e interpretação de Oliver Reed (Roderick Usher), Donald Pleasence (Walter Usher) e Romy Windsor; outra já em 2006, numa interessante direcção de Hayley Cloake, sobre argumento de Collin Chang que transporta a história para a actualidade (o que parece quase impossível é assegurado com alguma coerência pelos responsáveis). Uma casa senhorial perdida numa zona rural da província, a morte declarada de Madeline, irmã de Roderick Usher, uma amiga, Jill Michaelson, que vem ao funeral, e que fora antiga namorada de Roderick, e uma governanta intrigante que relembra personagem de “Rebecca” e se chama, por alguma razão, Mrs. Thatcher. A casa não racha mas assusta, não há incêndio ou descalabro que a destrua na derradeira sequência, mas de resto, apesar de passar-se no século XXI, a família sofre das mesmas maldições e doenças afins (com modernos tratamentos a condizer com a época), o incesto não só paira no ar, como se insinua mesmo de forma mais descarada, a danação dos Usher tem razão de ser numa consanguinidade que passa de irmãos para irmãos e de pais para filhos, e a loucura dessa herança que se quer manter a todo o custo acaba por ter os seus dissabores. O filme é discreto, mas mantém um bom clima, uma fotografia aceitável, uma interpretação de desconhecidos que não comprometem. É uma versão que se vê com agrado, numa noite em que não se tiver nada de melhor a fazer (ou se esteja a ver – quase - de castigo as obras de Edgar Allan Poe adaptadas ao cinema!).