AS VÁRIAS VERSÕES
CINEMATOGRÁFICAS DE “O CORVO”
Um dos poemas mais célebres de Edgar Allan Poe, senão mesmo o mais conhecido e citado, é “The Raven” (O Corvo), obviamente uma das suas obras igualmente mais adaptadas ao cinema. Sabe-se que, logo em 1912, nos EUA, surgiu uma primeira versão, de que se desconhece autor, mas de que se conhecem os intérpretes (Guy Oliver, como Edgar Allan Põe e Muriel Ostriche), e que se sabe ter sido uma produção Eclair American.
A adaptação seguinte data de 1935, novamente americana, uma produção Universal Pictures, com realização de Lew Landers. Este “The Raven”, com argumento de David Boehm, Florence Enright, Michael L. Simmons, Dore Schary, Guy Endore, Clarence Marks, Jim Tully e John Lynch, tinha um elenco de peso na época. Nada menos que os dois mais famosos “monstros” da altura, Boris Karloff e Bela Lugosi, respectivamente Frankenstein e Drácula dessa década de ouro do fantástico. Lew Landers, nascido em Nova Iorque, mas que inicialmente assinava as suas obras com o nome de baptizado, Louis Friedlander, foi um dos realizadores mais prolíferos do cinema norte-americano. “The Raven”, do início da sua carreira, será mesmo das suas obras de maior qualidade, mantendo, tal como muitas outras desses anos, uma larga dependência do cinema expressionista alemão da década precedente.
Tal como muitas outras adaptações de obras de Poe, este “The Raven” contenta-se em manter o título, algumas obsessões temáticas e um clima que se poderá dizer ter origem no belíssimo poema. Bela Lugosi interpreta a figura de um estranho doutor Richard Vollin, grande admirador de Poe que, nas horas livres da sua actividade de médico, se entretém a reconstituir, na cava da sua casa, uma verdadeira câmara de torturas, fabricando ele próprio cada um dos instrumentos de suplício imaginados por Edgar Allan Poe. Depois a história vai evoluindo em função de um crescendo de terror que conduzirá as vítimas a esse território de horror, encimado pelo célebre pêndulo da morte, mas onde não deixa de ter lugar igualmente uma câmara que se fecha sobre si própria, após o que as paredes começam a movimentarem-se no sentido de esmagar quem esteja aprisionado no seu interior.
Para introduzir um elemento romântico indispensável ao conforto das plateias, Friedlander inventa um paixão louca de Vollin por uma jovem que ele salva da morte, depois de um aparatoso acidente de automóvel, com que abre o filme, e que hipnotiza por forma a roubá-la ao seu noivo. A frágil figura da mulher perante as arremetidas brutais do sábio louco, eis as premissas habituais ao género. Há outras referências ao poema de Poe: a jovem que recupera inteiramente do acidente é bailarina e interpreta no teatro uma adaptação de “The Raven”. Vollin fica defenitivamente apaixonado pela mulher e pela sua interpretação, o que agudiza as situações e irá conduzir ao grande clímax.
Entretanto, pelas ruas da cidade, Edmond Bateman (Boris Karloff, aqui com um papel secundário, muito curioso, nitidamente subsidiário do seu “Frankenstein”), um conhecido e temido criminoso, esconde-se e bate à porta de Vollin, procurando que este o transforme, através de uma operação de plástica estética, numa noutra pessoa, e assim passar desapercebido. Mas o resultado não é o melhor. E tudo se conjuga para um final em crescendo, na tenebrosa câmara de horrores que o médico criou. O filme consegue, com simplicidade e eficácia, na sua modéstia de orçamento, criar um bom clima de inquietação e sedução, com planos bem delineados, enquadramentos desassossegados, iluminações perturbantes e personagens de algum sadismo, sabiamente aproveitadas. O corvo impera ao longo da obra, como presença obsidiante.
Posteriormente houve muitas outras versões, que desconhecemos (quase todas) por completo. Um episodio da série televisiva espanhola, “Historias para no dormir", precisamente chamada “El Cuervo” (1967), com realização de Narciso Ibáñez Serrador, com Rafael Navarro na figura de Edgar Allan Põe; uma adaptação alemã, “Der Wilde Rabe”, de Peter Sempel (RFA, 1985); um episódio, “Treehouse of Horror”, da série de TV, "The Simpsons", com direcção de David Silverman; uma nova incursão espanhola, desta feita com a assinatura de Tinieblas González; uma curta-metragem com o título “The Raven... Nevermore” ou “El Cuervo” e Gary Piquer na personagem de Edgar Allan Põe; finalmente duas novas cinematizações americanas, uma nova curta-metragem, desta feita com a assinatura de Peter Bradley (EUA, 2003), e uma longa de 2006, dirigida por Ulli Lommel, que escreveu também o argumento, e entregou a interpretação a Jillian Swanson (Lenore), Victoria Ullmann (Annabel Lee), e Michael Barbour (Edgar Allen Poe). Ulli Lommel é conhecido sobretudo por ter assinado “The Boogeyman”, um filme de terror de culto entre os fanáticos do género, sobretudo os que apreciam obras de pequeno orçamento, alguma imaginação e violência a preceito. Este “O Corvo” é, de certa forma, uma desilusão, ainda que mantenha algumas dessas características: o orçamento deverá ter sido mínimo, os actores são de terceira escolha (se é que houve escolha!), os cenários são minimalistas, a estrutura deficiente, mas bastante pretensiosa, o resultado não deixa lugar a muitas dúvidas.
Como se sabe, o poema de Poe fala da fatal tristeza de alguém que chora uma Lenora que partiu, e de um corvo que aparece, vindo da escuridão da noite, trazendo a mensagem de um “Nunca Mais”, ou seja da inexorabilidade da morte e da solidão que ela deixa nos que ficam chorosos de saudade. Partindo desta premissa, aberta a todas as interpretações, tudo é possível, desde que apareçam dois ou três símbolos carismáticos: o corvo, o nome de Lenora, a morte.
No filme de Ulli Lommel, Lenora em criança ouve o avô ler poemas de Edgar Allan Põe, o que lhe provoca pesadelos de terror. Mais tarde, encontramo-la, em Los Angeles, vocalista de uma banda, e perseguida por um assassino que vai dizimando todos os amigos à sua volta até chegar ao confronto final com a própria Lenora. Rara a excitação e a inquietação provocada por esta série B que procura elidir a falta de ideias com uma montagem modernaça, obcecada por postes e linhas de cabos eléctricos (o que tem a sua justificação, no argumento). Nada de muito extraordinário, portanto.
Já no século XXI, também na Argentina, em 2007, surgiu “El Cuervo”, uma média metragem de 30 minutos, dirigida por Richie Ercolalo. No meio destas versões todas tivemos “Der Rosenkönig” ou “Le Roi des Roses” (O Rei das Rosas), do alemão Werner Schroeter (RFA, França, Portugal, 1986). Filme estranho e invulgar é este, obra romântica e demencial, construída em forma de poema, sem obedecer a qualquer tipo de narrativa clássica, sem uma intriga exposta de forma linear. Werner Schroeter, um dos chefes de fila do novo cinema alemão surgido nos anos 60-70, procura sobretudo um encadeado de imagens, personagens, situações, sons, vozes (em diferentes idiomas), músicas (de origem variada, do ópera às ladainhas populares), luzes, que restituam um clima, uma ambiência fantástica, onírica. Neste aspecto, esta é uma das obras onde se sente mais a proximidade de Edgar Allan Poe, e do seu poema “The Raven”, de que se ouvem, lidos, alguns dos seus versos, bem assim como excertos de “City in the Sea” ou “Alone”, do mesmo autor, poesias de Pablo Neruda, fragmentos de “Chants de la Vie”, de Abou Kassem Ech’ Chabbi, um pedaço de uma peça de rádio, "série negra", de 1943, dita por Gloria Swanson, além de vozes dos padres católicos napolitanos e de alguns contos populares portugueses.
O filme parece ter sido escrito dia a dia ao longo das filmagens, num improviso constante ou numa “rêverie” continua, tanto por Werner Schroeter, como pela sua actriz predilecta, Magdalena Montezuma (que se chamava verdadeiramente Erica Kruger), e que aqui se despedia do cinema e da vida.
Rodado no nosso país, pelo produtor Paolo Branco, com vários portugueses na ficha técnica e no elenco, “O Rei das Rosas” fala-nos de uma mulher, Anna, alemã de nascimento, a viver em Portugal, num palacete abandonado numa quinta de mau augúrio, acompanhada por Albert, um filho que cultiva rosas e paixões funestas, nomeadamente por Fernando, um jovem que apanha um dia a roubar na sua capela, e que transforma num prisioneiro da sua sensualidade e ardor.
Filme de uma perversidade que se instala à medida que o tempo passa, obra sobre o amor e morte, por vezes mórbido, de maligna crueldade e de terrível beleza, "Le Roi des Roses" joga com um imaginário que tem muito a ver com a obra de um Mishima, de “Confissões de uma Máscara” a “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” (há uma concordância temática e de atmosfera quase obsessiva: mãe e filho, ausência da figura do pai, crueldade para com animais, o mar como referência de liberdade, exaltação do sofrimento, homossexualismo, imagem de martiriologia, São Sebastião, etc.).
Celebração, ritualismo, oratória, a simbologia mais forte inscreve-se a cada passo: mãe e filho na mesma cama numa sugestão de incesto que o filho renega, o sangue que escorre das rosas e passa ao corpo imolado de Fernando, a lavagem do corpo e a dependência de uma sensualidade exarcebada, o gato morto, a rã aprisionada numa gaiola dentro de água, o fogo redentor nas imagens finais, a morte suspensa de cada fotograma… A versão de “The Raven” mais conhecida, porém, é de Roger Corman, realizada em 1963, e que é o quinto filme da série dedicada a Edgar Allan Poe por este cineasta (os anteriores foram “A Queda da Casa Usher”, 1960; “O Fosso e o Pêndulo”, 1961, “O Sepultado Vivo”, 1962, “A Maldita, o Gato e a Morte”, 1962; a que se seguiram “A Máscara da Morte Vermelha”, 1964, e “O Túmulo de Ligeia”, 1964).
Neste conjunto de títulos, todos eles de forte inspiração fantástica, inscrevendo-se no mais puro terror gótico, “O Corvo” faz figura de desalinhado, pois, se mantém todas as características de série, quanto a valores de produção, equipa técnica e artística, cenários, guarda roupa, etc, acrescenta-lhe uma outra que só tinha sido pressentida aqui e ali ao longo dos outros filmes: o humor. Na verdade pode considerar-se “O Corvo”uma comédia fantástica, baseando muito do seu humor na presença de três actores míticos no género (Vincent Price, Peter Lorre e Boris Karloff) que aqui se auto parodiam com imensa subtileza e graça, criando situações divertidíssimas e saboreando de forma incomparável o seu trabalho. Nem o facto de Boris Karloff se encontrar doente, durante as filmagens, retirou algum enacnto ao resultado final, acrescentando-lhe até algum se possível: como Karloff estava doente, o duelo final entre ele e Vincent Price efectua-se com os actores sentados em enormes poltronas, o que acaba por ampliar o efeito da paródia. De resto, e para completar o que deve ser dito sobre o elenco, brilhante, há que referir a presença do então muito jovem Jack Nicholson, num papel que prenuncia já as geniais loucuras que se lhe seguiram, e ainda a bela Hazel Court, outra presença regular neste conjunto de filmes.
Uma das razões da qualidade desta série, é o facto de ter alguns escritores de grande qualidade a adaptarem os contos, e neste caso o poema, do celebrado escritor americano. Richard Matheson é um nome grande do romance fantástico e a ele se deve a adaptação do poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe (outros escritores ao serviço de Corman nesta série foram, por exemplo, Charles Beaumont e Robert Towne).
Tudo se passa entre mágicos: o sorumbático Erasmus Craven (Vicent Price), que vive solitário no seu castelo, saudoso da sua Lenora desaparecida, vê inesperadamente entrar pela janela dentro um corvo que fala e que lhe confessa ser um antigo mago, enfeitiçado durante uma rija de mágicos, e que lhe pede a salvação, ou seja, uma mezinha que o faça regressar à sua antiga forma humana. Craven acaba por reunir os condimentos necessários à sopa de pedra que trará Bedlo (Peter Lorre) de novo à sua existência normal. Nessa altura, Bedlo confessa a Craven que a mulher deste, a tão suspirada Lenora, não se encontra morta e sepultada no esquife que o marido venera, mas sim nas mãos do perverso Scarabus (Boris Karloff), que vive por ali perto num outro castelo amaldiçoado. Para lá se dirigem, e por lá dirimem o que têm a dirimir. Com algum suspense e muita diversão.
O filme volta a mostrar como, com meios reduzidos mas alguma imaginação, muito talento e sensibilidade se consegue erguer uma obra particularmente interessante, recuperando algo do universo de Poe, e conceber em simultâneo um filme esteticamente de algum requinte e de assegurado sucesso popular.
A adaptação seguinte data de 1935, novamente americana, uma produção Universal Pictures, com realização de Lew Landers. Este “The Raven”, com argumento de David Boehm, Florence Enright, Michael L. Simmons, Dore Schary, Guy Endore, Clarence Marks, Jim Tully e John Lynch, tinha um elenco de peso na época. Nada menos que os dois mais famosos “monstros” da altura, Boris Karloff e Bela Lugosi, respectivamente Frankenstein e Drácula dessa década de ouro do fantástico. Lew Landers, nascido em Nova Iorque, mas que inicialmente assinava as suas obras com o nome de baptizado, Louis Friedlander, foi um dos realizadores mais prolíferos do cinema norte-americano. “The Raven”, do início da sua carreira, será mesmo das suas obras de maior qualidade, mantendo, tal como muitas outras desses anos, uma larga dependência do cinema expressionista alemão da década precedente.
Tal como muitas outras adaptações de obras de Poe, este “The Raven” contenta-se em manter o título, algumas obsessões temáticas e um clima que se poderá dizer ter origem no belíssimo poema. Bela Lugosi interpreta a figura de um estranho doutor Richard Vollin, grande admirador de Poe que, nas horas livres da sua actividade de médico, se entretém a reconstituir, na cava da sua casa, uma verdadeira câmara de torturas, fabricando ele próprio cada um dos instrumentos de suplício imaginados por Edgar Allan Poe. Depois a história vai evoluindo em função de um crescendo de terror que conduzirá as vítimas a esse território de horror, encimado pelo célebre pêndulo da morte, mas onde não deixa de ter lugar igualmente uma câmara que se fecha sobre si própria, após o que as paredes começam a movimentarem-se no sentido de esmagar quem esteja aprisionado no seu interior.
Para introduzir um elemento romântico indispensável ao conforto das plateias, Friedlander inventa um paixão louca de Vollin por uma jovem que ele salva da morte, depois de um aparatoso acidente de automóvel, com que abre o filme, e que hipnotiza por forma a roubá-la ao seu noivo. A frágil figura da mulher perante as arremetidas brutais do sábio louco, eis as premissas habituais ao género. Há outras referências ao poema de Poe: a jovem que recupera inteiramente do acidente é bailarina e interpreta no teatro uma adaptação de “The Raven”. Vollin fica defenitivamente apaixonado pela mulher e pela sua interpretação, o que agudiza as situações e irá conduzir ao grande clímax.
Entretanto, pelas ruas da cidade, Edmond Bateman (Boris Karloff, aqui com um papel secundário, muito curioso, nitidamente subsidiário do seu “Frankenstein”), um conhecido e temido criminoso, esconde-se e bate à porta de Vollin, procurando que este o transforme, através de uma operação de plástica estética, numa noutra pessoa, e assim passar desapercebido. Mas o resultado não é o melhor. E tudo se conjuga para um final em crescendo, na tenebrosa câmara de horrores que o médico criou. O filme consegue, com simplicidade e eficácia, na sua modéstia de orçamento, criar um bom clima de inquietação e sedução, com planos bem delineados, enquadramentos desassossegados, iluminações perturbantes e personagens de algum sadismo, sabiamente aproveitadas. O corvo impera ao longo da obra, como presença obsidiante.
Posteriormente houve muitas outras versões, que desconhecemos (quase todas) por completo. Um episodio da série televisiva espanhola, “Historias para no dormir", precisamente chamada “El Cuervo” (1967), com realização de Narciso Ibáñez Serrador, com Rafael Navarro na figura de Edgar Allan Põe; uma adaptação alemã, “Der Wilde Rabe”, de Peter Sempel (RFA, 1985); um episódio, “Treehouse of Horror”, da série de TV, "The Simpsons", com direcção de David Silverman; uma nova incursão espanhola, desta feita com a assinatura de Tinieblas González; uma curta-metragem com o título “The Raven... Nevermore” ou “El Cuervo” e Gary Piquer na personagem de Edgar Allan Põe; finalmente duas novas cinematizações americanas, uma nova curta-metragem, desta feita com a assinatura de Peter Bradley (EUA, 2003), e uma longa de 2006, dirigida por Ulli Lommel, que escreveu também o argumento, e entregou a interpretação a Jillian Swanson (Lenore), Victoria Ullmann (Annabel Lee), e Michael Barbour (Edgar Allen Poe). Ulli Lommel é conhecido sobretudo por ter assinado “The Boogeyman”, um filme de terror de culto entre os fanáticos do género, sobretudo os que apreciam obras de pequeno orçamento, alguma imaginação e violência a preceito. Este “O Corvo” é, de certa forma, uma desilusão, ainda que mantenha algumas dessas características: o orçamento deverá ter sido mínimo, os actores são de terceira escolha (se é que houve escolha!), os cenários são minimalistas, a estrutura deficiente, mas bastante pretensiosa, o resultado não deixa lugar a muitas dúvidas.
Como se sabe, o poema de Poe fala da fatal tristeza de alguém que chora uma Lenora que partiu, e de um corvo que aparece, vindo da escuridão da noite, trazendo a mensagem de um “Nunca Mais”, ou seja da inexorabilidade da morte e da solidão que ela deixa nos que ficam chorosos de saudade. Partindo desta premissa, aberta a todas as interpretações, tudo é possível, desde que apareçam dois ou três símbolos carismáticos: o corvo, o nome de Lenora, a morte.
No filme de Ulli Lommel, Lenora em criança ouve o avô ler poemas de Edgar Allan Põe, o que lhe provoca pesadelos de terror. Mais tarde, encontramo-la, em Los Angeles, vocalista de uma banda, e perseguida por um assassino que vai dizimando todos os amigos à sua volta até chegar ao confronto final com a própria Lenora. Rara a excitação e a inquietação provocada por esta série B que procura elidir a falta de ideias com uma montagem modernaça, obcecada por postes e linhas de cabos eléctricos (o que tem a sua justificação, no argumento). Nada de muito extraordinário, portanto.
Já no século XXI, também na Argentina, em 2007, surgiu “El Cuervo”, uma média metragem de 30 minutos, dirigida por Richie Ercolalo. No meio destas versões todas tivemos “Der Rosenkönig” ou “Le Roi des Roses” (O Rei das Rosas), do alemão Werner Schroeter (RFA, França, Portugal, 1986). Filme estranho e invulgar é este, obra romântica e demencial, construída em forma de poema, sem obedecer a qualquer tipo de narrativa clássica, sem uma intriga exposta de forma linear. Werner Schroeter, um dos chefes de fila do novo cinema alemão surgido nos anos 60-70, procura sobretudo um encadeado de imagens, personagens, situações, sons, vozes (em diferentes idiomas), músicas (de origem variada, do ópera às ladainhas populares), luzes, que restituam um clima, uma ambiência fantástica, onírica. Neste aspecto, esta é uma das obras onde se sente mais a proximidade de Edgar Allan Poe, e do seu poema “The Raven”, de que se ouvem, lidos, alguns dos seus versos, bem assim como excertos de “City in the Sea” ou “Alone”, do mesmo autor, poesias de Pablo Neruda, fragmentos de “Chants de la Vie”, de Abou Kassem Ech’ Chabbi, um pedaço de uma peça de rádio, "série negra", de 1943, dita por Gloria Swanson, além de vozes dos padres católicos napolitanos e de alguns contos populares portugueses.
O filme parece ter sido escrito dia a dia ao longo das filmagens, num improviso constante ou numa “rêverie” continua, tanto por Werner Schroeter, como pela sua actriz predilecta, Magdalena Montezuma (que se chamava verdadeiramente Erica Kruger), e que aqui se despedia do cinema e da vida.
Rodado no nosso país, pelo produtor Paolo Branco, com vários portugueses na ficha técnica e no elenco, “O Rei das Rosas” fala-nos de uma mulher, Anna, alemã de nascimento, a viver em Portugal, num palacete abandonado numa quinta de mau augúrio, acompanhada por Albert, um filho que cultiva rosas e paixões funestas, nomeadamente por Fernando, um jovem que apanha um dia a roubar na sua capela, e que transforma num prisioneiro da sua sensualidade e ardor.
Filme de uma perversidade que se instala à medida que o tempo passa, obra sobre o amor e morte, por vezes mórbido, de maligna crueldade e de terrível beleza, "Le Roi des Roses" joga com um imaginário que tem muito a ver com a obra de um Mishima, de “Confissões de uma Máscara” a “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” (há uma concordância temática e de atmosfera quase obsessiva: mãe e filho, ausência da figura do pai, crueldade para com animais, o mar como referência de liberdade, exaltação do sofrimento, homossexualismo, imagem de martiriologia, São Sebastião, etc.).
Celebração, ritualismo, oratória, a simbologia mais forte inscreve-se a cada passo: mãe e filho na mesma cama numa sugestão de incesto que o filho renega, o sangue que escorre das rosas e passa ao corpo imolado de Fernando, a lavagem do corpo e a dependência de uma sensualidade exarcebada, o gato morto, a rã aprisionada numa gaiola dentro de água, o fogo redentor nas imagens finais, a morte suspensa de cada fotograma… A versão de “The Raven” mais conhecida, porém, é de Roger Corman, realizada em 1963, e que é o quinto filme da série dedicada a Edgar Allan Poe por este cineasta (os anteriores foram “A Queda da Casa Usher”, 1960; “O Fosso e o Pêndulo”, 1961, “O Sepultado Vivo”, 1962, “A Maldita, o Gato e a Morte”, 1962; a que se seguiram “A Máscara da Morte Vermelha”, 1964, e “O Túmulo de Ligeia”, 1964).
Neste conjunto de títulos, todos eles de forte inspiração fantástica, inscrevendo-se no mais puro terror gótico, “O Corvo” faz figura de desalinhado, pois, se mantém todas as características de série, quanto a valores de produção, equipa técnica e artística, cenários, guarda roupa, etc, acrescenta-lhe uma outra que só tinha sido pressentida aqui e ali ao longo dos outros filmes: o humor. Na verdade pode considerar-se “O Corvo”uma comédia fantástica, baseando muito do seu humor na presença de três actores míticos no género (Vincent Price, Peter Lorre e Boris Karloff) que aqui se auto parodiam com imensa subtileza e graça, criando situações divertidíssimas e saboreando de forma incomparável o seu trabalho. Nem o facto de Boris Karloff se encontrar doente, durante as filmagens, retirou algum enacnto ao resultado final, acrescentando-lhe até algum se possível: como Karloff estava doente, o duelo final entre ele e Vincent Price efectua-se com os actores sentados em enormes poltronas, o que acaba por ampliar o efeito da paródia. De resto, e para completar o que deve ser dito sobre o elenco, brilhante, há que referir a presença do então muito jovem Jack Nicholson, num papel que prenuncia já as geniais loucuras que se lhe seguiram, e ainda a bela Hazel Court, outra presença regular neste conjunto de filmes.
Uma das razões da qualidade desta série, é o facto de ter alguns escritores de grande qualidade a adaptarem os contos, e neste caso o poema, do celebrado escritor americano. Richard Matheson é um nome grande do romance fantástico e a ele se deve a adaptação do poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe (outros escritores ao serviço de Corman nesta série foram, por exemplo, Charles Beaumont e Robert Towne).
Tudo se passa entre mágicos: o sorumbático Erasmus Craven (Vicent Price), que vive solitário no seu castelo, saudoso da sua Lenora desaparecida, vê inesperadamente entrar pela janela dentro um corvo que fala e que lhe confessa ser um antigo mago, enfeitiçado durante uma rija de mágicos, e que lhe pede a salvação, ou seja, uma mezinha que o faça regressar à sua antiga forma humana. Craven acaba por reunir os condimentos necessários à sopa de pedra que trará Bedlo (Peter Lorre) de novo à sua existência normal. Nessa altura, Bedlo confessa a Craven que a mulher deste, a tão suspirada Lenora, não se encontra morta e sepultada no esquife que o marido venera, mas sim nas mãos do perverso Scarabus (Boris Karloff), que vive por ali perto num outro castelo amaldiçoado. Para lá se dirigem, e por lá dirimem o que têm a dirimir. Com algum suspense e muita diversão.
O filme volta a mostrar como, com meios reduzidos mas alguma imaginação, muito talento e sensibilidade se consegue erguer uma obra particularmente interessante, recuperando algo do universo de Poe, e conceber em simultâneo um filme esteticamente de algum requinte e de assegurado sucesso popular.
Sem comentários:
Enviar um comentário