sábado, 15 de novembro de 2008

NOTAS SOBRE EDGAR ALLAN POE NO CINEMA IV

EDGAR ALLAN POE E O CINEMA
Ao analisar de forma muito rápida e sucinta a filmografia extraída de obras de Edgar Allan Poe, cumpre desde logo fazer ressaltar algumas ideias chaves. A primeira é a de que, apesar deste escritor ser um dos expoentes máximos da literatura fantástica e um dos mestres da literatura mundial, mais ainda um dos iniciadores da literatura moderna, um poeta admirável, um contista exemplar, um precursor do romance policial, poucos foram os grandes mestres da História do Cinema que dele se aproximaram buscando inspiração para obras suas. Há casos, certamente, Griffith e Fellini são dois exemplos possíveis, mas nem os filmes daí resultantes foram dos mais conseguidos, nem dois ou três títulos em mais de duas centenas de filmes são marca significativa.
Vejamos então quem se tem interessado pela obra de Edgar Allan Poe no campo do cinema. Não erraremos muito se os juntarmos em três grupos: alguns, não muitos, vanguardistas europeus e norte-americanos, ligados a escolas surrealistas ou expressionistas (Jean Epstein, Robert Florey, Edgar G. Ulmer, etc.), alguns mestres de série B, que representam o que de melhor a inspiração de Poe nos legou no cinema (nomeadamente Roger Corman, Gordon Hessler, ) e um grupo vasto de artesãos de série Z, mais interessados no negócio do que em arte, mas que não deixa de ser significativo preferirem Poe em tantas ocasiões, umas por oportunismo, servindo-se do nome e do prestígio do escritor, outras por sincero interesse literário, nem sempre devidamente vertido em imagens, é certo!.
Outro aspecto curioso a sublinhar: as obras de Edgar Allan Poe raras vezes são adaptadas de forma muito fiel à intriga e ao esquema dramático das mesmas, preferindo-se-lhes uma adaptação ao espírito, à atmosfera, às obsessões do escritor. Nem por isso, no entanto, muitas das adaptações não serão conseguidas, sobretudo na forma como continuam ou prolongam o clima gótico de uma indisfarçável estranheza e mistério.
"MURDERS IN THE RUE MORGUE"
No início da década de 30, nos EUA, uma produtora, a Universal, inspirando-se nas obras expressionistas que tinham feito o sucesso do cinema alemão nos anos 20, recorreu a um conjunto de clássicos da literatura fantástica que adaptou ao cinema, e lançou no mercado um grupo de filmes de terror que marcaram uma época. “Drácula”, “Frankenstein”, “O Homem Invisível”, “O Homem Lobo”, “A Múmia” foram alguns títulos dos mais recordados, onde se notabilizaram cineastas como Tod Browning ou James Whale, e actores como Boris Karloff e Bela Lugosi. Mas houve outros títulos igualmente notáveis, alguns retirados de obras de Edgar Allan Poe, como “O Crime da Rua Morgue”, “O Corvo” e “Magia Negra” (The Black Cat). São todas elas de princípios dos anos 30, assinadas por realizadores de prestígio, como Robert Florey ou Edgar G. Ulmer, todas interpretadas por Bela Lugosi, então no auge do seu fascínio, em duas delas ao lado de Boris Karloff, e que não ficam muito atrás dos clássicos sempre citados deste período.
“O Crime da Rua Morgue”, de 1932, parte do romance homónimo de Edgar Allan Poe, não se cingindo nem muito nem pouco à intriga original da obra literária, antes usando e abusando das liberdades criativas dos seus argumentistas, realizador e produtores. Desta adaptação consta, aliás, uma lista de participantes bem larga (Robert Florey, Tom Reed, Dale Van Every, John Huston e Ethel M. Kelly) que devem ter mexido e remexido o caldo até este conhecer a espessura que hoje lhe dá o sabor da época.
Consta que Bela Lugosi e Robert Florey, actor e realizador do elenco fixo da Universal e que estavam indigitados para representar e dirigir “Frankenstein” (substituídos, à ultima hora, respectivamente por Boris Karloff e James Whale), vieram parar a “Murders In The Rue Morgue” como compensação pela saída dessa outra obra que se tornaria um dos mais sólidos clássicos da história do fantástico no cinema. Mas, na verdade, tanto Bela Lugosi, que triunfara brilhantemente meses antes em “Drácula”, como Boris Karloff, que atingiria o estrelato com “Frankenstein”, se tornaram de um dia para o outro os símbolos máximos do terror em terras norte-americanas.

Como se sabe, no original de 1841 de Edgar Allan Poe o essencial é o elogio de uma lógica dedutiva e analítica em que o protagonista, o jovem August Dupin, é pródigo. A novela vive muito do esclarecimento de um caso, de aparente impossível resolução, ocorrido na rua Morgue, de Paris. Duas mulheres, mãe e filha, são assassinadas barbaramente, mas o mais estranho de tudo, é a forma como os cadáveres de ambas aparecem, um escondido no interior de uma chaminé de lareira, o outro, degolado, nas traseiras do prédio. A multidão e a polícia que acorreram e subiram escadas acima, impediam a fuga de qualquer intruso por essa via, mas dentro de casa, num cenário de dantesca brutalidade, as janelas estavam fechadas e trancadas e não havia qualquer outra hipótese de fuga. Mas a multidão ouvira vozes masculinas, para lá dos gritos estridentes das mulheres assaltadas. Todo afirmam que uma das vozes era de um francês, mas a outra voz merece os mais desencontrados comentários. A polícia investiga, os poderes inquietam-se, os cidadãos vivem aterrorizados, mas ninguém parece acertar com a identidade do ou dos assassinos. Há mesmo um empregado de banco que é preso, suspeito de se ter servido de informações pessoais para certamente extorquir pesada soma às damas em questão, mas não há roubo, apesar de existirem quatrocentas moedas de ouro espalhadas pelo chão. Pierre Dupin necessita apenas de ler as notícias publicadas nos jornais locais e de uma sóbria peritagem no local do crime, para fazer publicar um anúncio num diário parisiense e esperar calmamente que o dono do chimpanzé apareça para o reclamar, levando-o depois a confessar como tudo se passou. “Elementar, meu caro Watson”, dirá, anos mais tarde, Conan Doyle, depois de ter lido e relido Poe, que lhe serviu obviamente de inspiração para conceber a sua fabulosa figura de Sherlock Holmes, com o mesmo tipo de faro intuitivo, a mesma dedução, o mesmo cariz analítico. Nada brota do zero, tudo se transforma, é conceito comummente sabido e aceite. Se a novela é deste tipo, esta versão de Robert Florey, de 1934, exagera nos floreados, ainda que se mantenha muito perto da atmosfera original, uma brumosa cidade de Paris, no ido ano de 1845, carregada de sombras ameaçadoras, de escadas de sinistro traçado, de contrastada iluminação de um claro-escuro de franco alento expressionista (podem referir-se como fontes de influência, mais ou menos directa, obras como “O Gabinete do Dr. Caligary” ou “Der Golem”, ambas de 1920, ou “Nosferatu”, de 1922, por exemplo), mas muito distante da intriga da novela. Pouco se fala de análise dedutiva, mas entra-se abertamente no campo dos sábios loucos e obstinados, das torturas e das experiências científicas, temas igualmente tão do agrado de Poe: Bela Lugosi, aqui na personagem do Dr. Mirakle, que não existe na novela, vive obcecado pela teoria darwineana da evolução, na qual o homem descende do macaco, e procura demonstra-la a todo o transe, utilizando um gorila como atracão de feira (muito na linha de um “O Gabinete do Dr. Caligary”), que atrai jovens donzelas, que o louco rapta para nelas injectar sangue do gorila e descobrir os resultados. Que não são brilhantes, nem para a ciência, nem para as incautas jovens que sucumbem a tantos maus-tratos. Até que um dia é Camille, a noiva do jovem médico Pierre Dupin (Leon Ames), a cair nos braços dos experimentalistas. Obviamente que a dedução de Dupin funciona a tempo de evitar maiores danos. A transferência do centro de interesse da novela para o filme é evidente. Na novela não se sabe, até perto do fim, quem assassina e como o crime é praticado e é nessa investigação puramente dedutiva que se materializa a inquietação. No filme, desde inicio que nós, espectadores, sabemos quem mata quem e como, resta saber apenas como se descobre o criminoso e se as forças do Bem chegam ao local do crime antes de se processar novo crime (agora com uma vítima que nós bem conhecemos e por quem nos batemos). Um novo tipo de suspense, é certo, introduzindo novas personagens, diferentes intrigas, multiplicidade de cenários e a personagem de um sábio louco que, não existindo na novela, não anda longe de outras personagens maléficas da corte de Edgar Allan Poe.
Mas o filme mostra-se particularmente curioso e interessante, em grande parte pela magnífica fotografia de Karl Freund, num preto e branco brumoso, conseguindo excelentes sequências, como as que mostram Paris à noite ou a cena passada na barraca do Dr. Mirakle. Há mesmo alguns momentos altíssimos de realização, como aquele em que Camille evolui num balouço, acompanhada pela câmara que oscila segundo os movimentos de um inquietante pêndulo, ou quando percorremos a câmara de horrores do malvado cientista. O clima é de série B, o orçamento não era certamente elástico (mas nesses anos de grande depressão os estúdios contiveram-se um pouco em todos os sentidos), mas o resultado não desmerece e Bela Lugosi brilha num tipo de representação amaneirada que o iria tornar célebre (durante uns anos, depois a queda foi mais ou menos vertiginosa, acabando nas mãos de Ed Wood!). Curiosamente, para se ver como tudo isto anda ligado, não foi só Conan Doyle que foi beber a Edgar Allan Poe, também Ernest B. Schoedsack e Merian C. Cooper foram buscar muitas ideias a esta obra de Florey para o seu clássico “King Kong” (toda a sequência final do gorila fugindo pelos telhado de Paris com a sua amada aos ombros nos faz recordar muito do que depois se veria em “King Kong”).
Esta não foi a primeira vez que "The Murders in the Rue Morgue" foi adaptado ao cinema. Tanto esta primeira aventura literária de Dupin, como as duas outras que se lhe seguiram ("The Mystery of Marie Roget" e "The Purloined Letter") conheceram várias adaptações. Mantendo-nos apenas no território de “Os Crimes da Rua Morgue” há logo a referir, ainda em 1908, uma primeira aproximação, muito curiosa. “Sherlock Holmes in the Great Murder Mystery” conta com argumento do próprio Arthur Conan Doyle, segundo a obra de Edgar Allan Poe, e é certamente lamentável não haver cópia disponível para se poder ver como ambos os mestres da literatura policial coexistiam numa mesma aventura. Outro filme mudo, este de 1914, é “Murders in the Rue Morgue”, de que não se possui nenhuma cópia igualmente, sendo portanto esta versão de Robert Florey de 1932 a primeira a poder ser vista presentemente.

Outras se lhe seguiram, a mais famosa das quais (possivelmente) data de 1954. “O Fantasma da Rua Morgue” (Phantom of the Rue Morgue), de Roy Del Ruth, com Karl Malden (Dr. Marais), Claude Dauphin (Insp. Bonnard), Patricia Medina (Jeanette e Steve Forrest (Prof. Paul Dupin), uma produção da Warner que pretendia objectivamente repetir o êxito estrondoso de “Máscaras de Cera”, em 3D. O título de Roy del Ruth é uma recuperação do filme de Robert Florey, agora em voluptuoso e garrido Warnercolor, com um jovem médico acusado de um violento crime na Rue Morgue, em Paris, que não cometeu, e um obsessivo Dr. Marais (excelente Karl Malden), que aproveitando-se da sua permanência no zoo local, consegue treinar um gorila para efectuar em seu nome os crimes que imagina, sempre sobre mulheres indefesas que se encontram fechadas no interior de solitários apartamentos. Numa Paris sedutora, onde impera a loucura do Can Can, e simultaneamente sombria, como convém, o gorila (interpretado por Charles Gemora, um especialista que já interpretara a mesma personagem na versão de 1932, e se tornara numa espécie de “must” sempre que havia por essa altura gorila, orangotango ou chimpanzé a movimentar) vai estilhaçando corpos com inaudita violência, numa versão muito “gore” que, infelizmente, não se encontra disponível ainda em DVD. Mais um vez em lugar de um pobre marinheiro que traz de longe um gorila assassino, a loucura de um homem se sobrepõe à da besta inocente que utiliza a sua força bruta sob comando à distância. Em vez de um crime duplo cometido numa casa, várias sádicas investidas relembram um Jack, o Estripador, que troca Londres por Paris. Roy Del Ruth foi um divertido realizador de séries B, e o filme adquire essa atmosfera de folhetim popular contando crimes do século XIX. Vi esta fita há muitos anos, retenho boa recordação de adolescente traumatizado (!) pelo seu terror, mas precisaria de rever a obra para uma opinião mais segura. Fica a dica. Em 1968, surge um episódio de uma série de TV, "Detective", contando a história de“The Murders in the Rue Morgue”, numa realização de James Cellan Jones, com argumento de James MacTaggart. Não vi.
Há muito que não via “Murders in the Rue Morgue”, de Gordon Hessler, com Jason Robards (Cesar Charron), Herbert Lom (Rene Marot), Christine Kaufmann (Madeleine Charron), Adolfo Celi (Inspector Vidocq) e Maria Perschy (Genevre). Como o próprio Gordon Hessler afirmou, numa entrevista que o DVD recorda, “adaptar “Os Crimes da Rua Morgue” é difícil, pois já se lhe conhece o desfecho: foi o macaco que matou.” Este aspecto (que julgo um falso problema: quantos filmes adaptam obras e situações de que todos sabemos o desfecho, basta recordar “Titanic” ?) levou Hessler a imaginar algo mais complexo para esta sua versão: estamos em pleno século XIX, na Rue Morgue, em Paris (o filme foi, porém, integralmente rodado em Espanha), onde uma companhia de teatro, especializada em “Grand Guignol” sangrento e melodramático, dirigida por um espalhafatoso Cesar Charron (Jason Robards), leva a cena uma adaptação de "Murders in the Rue Morgue", segundo Edgar Allan Poe. Esta premissa serve às mil maravilhas para roubar o nome da obra de Poe, e depois associar-lhe uma intriga externa, que, muito embora tenha um pouco a ver com o universo Poe, não se lhe pode associar de imediato: René Marot, um louco mascarado, apaixonado por uma das actrizes da companhia, Madeleine (Christine Kaufmann), vai assassinando, por vingança, um a um, os membros do elenco desse teatro, onde se representa uma peça robustecida pela presença de um gorila que dá nome à obra, “Erik, o Macaco”. Todos julgavam René Marot morto, a quando de um acidente que vitimara a ex-mulher de Marot, mas afinal este salvara-se ainda que muito desfigurado. O filme joga com alguma perícia com estes ingredientes, com um colorido saturado de tons fortes e uma inquietante direcção artística, que sublinha bem algumas das virtudes da realização de Gordon Hessler, um experimentado artesão de série B, aqui mobilizando um orçamento favorecido pela sorte (que, todavia, lhe haveria de trazer contrariedades, pois a versão estreada era uma montagem do produtor e não a sua, que só muito recentemente foi restaurada, aquando do lançamento internacional do DVD). Um filme que se vê com muito agrado, integrado no seu contexto especifico. Estamos na verdade cada vez mais distantes de Poe e da sua história original e cada vez mais perto de “The Phantom of the Opera” (não é por acaso que o louco mascarado é interpretado por Herbert Lom que também aparecia na versão da década de 50 de “O Fantasma da Ópera”). Mas há indícios de Poe na loucura das personagens, nos sonhos perturbadores, nos assassinatos mórbidos (das gargantas friamente cortadas pela lâmina ao ácido vertido em inocentes rostos), nos sepultados vivos, numa certa atmosfera tenebrosa de horror psicológico.

A versão francesa de Jacques Nahum, de “Le Double assassinat de la rue Morgue”, com Georges Descrières e Daniel Gélin (Dupin), emitida pela TV em 1973, também é do meu desconhecimento, mas revi com agrado uma outra versão televisiva, esta assinada por Jeannot Szwarc, e que se chamou “The Murders in the Rue Morgue” ou “Le Tueur de la Rue Morgue”, produção norte americana e francesa, rodada em Paris, com argumento de David Epstein, que se aproxima um pouco mais da dedução analítica da novela, ainda que transforme Dupin num velho polícia francês, reformado a contra gosto, por inimizades com o novo director da gendarmerie. Os crimes acontecem como Poe imaginou, as investigações fazem apelo amiúde a conjecturas de argúcia dedutiva, existe um marinheiro e um gorila que só aparecem no final da história, e as liberdades “poéticas” são aqui reduzidas. Procura-se respeitar o tom da obra donde se parte, a imaginação visual não é estonteante, tudo se cumpre dentro dos cânones do teledramático de sólida construção técnica, as representações são boas por parte de um elenco resistente (George C. Scott, Rebecca De Mornay, Ian McShane, Val Kilmer, …). Não é Poe de primeira colheita, falta-lhe fantasia e um pouco de fancaria popular, esta é uma versão para telespectador bem instalado na vida, que se vê como um entretenimento sem mácula. De uma outra versão tenho conhecimento, russa, “Ubitye molniey”, de 2002, assinada por Yevgeny Yufit, com argumento de Vera Novikova. Apnas conhecimento, nada mais. Assim se completa o ciclo de “Os Crimes da Rua Morgue” no cinema. Mas muitas obras de Edgar Allan Poe requerem a nossa atenção.

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